sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O ALFAIATE DE PIEDADE

Sentado à mesa, molha o pão dormido no café e lê o jornal, sem pressa. Procura algum sentido nas notícias e sorri da própria sorte. Coloca o papel de lado. No bolso de trás um pente fino da marca Flamengo. Nenhuma identidade. Sr. Nino é torcedor do América.

Mas, sua grande paixão são os cavalos. A bem da verdade, seu único prazer nos últimos seis anos, depois que dona Ieda lhe deixou sem ter tido vontade. Passava os dias ali, sentando diante de uma mesa de quatro lugares, pés de ferro e sem pintura. Seguro em suas mãos, um velho aparelho que funciona à pilha e pega até  “as rádios do estrangeiro”.

Todos os dias, a mesma rotina. Após o café, coloca uma camisa listada de botões e tecido. Por baixo, uma camiseta branca, limpa. Veste também, e com orgulho, as calças de tergal, feitas pelo prórpio, há mais de 30 anos.   Caminha até a casa de apostas e faz a sua “fé”. No caminho de volta, uma pausa na venda do Sr. Armínio. Compra algumas balas para Isabela, a menina do prédio em frente, que saí para a escola às onze horas, não sem antes, brincar de esconde com o velho solitário.

Sr. Nino foi o alfaiate mais requisitado de Piedade em meados dos anos 30. Vinha gente até dos “engenhos” fazer terno com ele. Orgulhava-se também, de ser conhecido por toda a vizinhança e de ter conquistado um número de amigos de forma que nem conseguia lembrar-se de todos. Nunca, porém, perdeu a humildade e nem quis saber de acumular riqueza ou sair do bairro.

Seus filhos, não. Cada um, dos três, tomou um rumo diferente na vida. Carolina  foi para os Estados Unidos. Carlinhos aventurou-se pelo Marrocos e Claudionor ficou mais perto, em Brasília. Aqui no Rio, foi morrendo um a um dos irmãos, vizinhos e amigos. Restou seu Nino, seu rádio e as corridas de cavalos.

 Mas a solidão nunca foi sua companheira, exceto ao final do Ano. Isabela não ia para a escola e Sr. Armínio partia para Portugal em busca de parentes ainda vivos. O mais cruel, porém, era falta de corridas. As lojas de apostas até permaneciam abertas, mas apenas para loterias. Conseguia assim, um sorriso ou outro de uma atendente mais antiga e um “Feliz Natal” do jornaleiro. No mais, a tristeza finalmente, o vencia.

Nessa época era difícil mesmo, levantar-se e cozinhar. Adoeceu uns três Natais seguidos, de forma que naquele ano, resolveu contratar uma firma que lhe forneceria quentinhas. No dia 24, não fazia Ceia. Comprava alguns bolinhos de bacalhau e garrafas de vinho chileno.  Embora não fosse muito religioso, a Missa do Galo lhe fazia alguma companhia, já que o bom velhinho não aparecia. E o Natal passava assim, só e devagar. 

Isabela apareceu, vindo do nada, bateu-lhe a porta e o chamou para brincar. Seus pais, passaram do sexto andar à cobertura, e imaginaram – pensou Sr. Nino – poder ver os fogos de Copacabana lá de cima. Mas o velho alfaiate ainda não estava decidido a aceitar o convite.

O Reveillon logo chegou. Enquanto Sr. Nino permanecia indeciso, Isabela o conduzia, com suas mãos pequenas, pela imensa sala de seu novo lar. Atravessaram todo o apartamento e o alojaram numa confortável cadeira à beira da Piscina, onde foi apresentado a todos os convidados. Logo, Sr. Walter lhe cercou com alguns amigos e se perderam no tempo, falando sobre a vida, o bairro de Piedade e suas transformações. Quando os primeiros fogos foram ouvidos, caminharam até a sala e um espumante foi aberto. Dona Virna pediu um minuto de atenção. Agradeceu a presença de todos e anuncio a passagem de um vídeo comemorativo da nova casa.

Sr.Nino colocou os óculos para enxergar melhor, mas logo seus olhos ficaram embaçados. Um a um, seus filhos, noras e netos, surgiram a sua frente, ultrapassando as 42 polegadas daquele modesto televisor, invadindo a sua memória e espalhando-se por todo o ambiente. Foi a primeira vez que o velho alfaiate ouviu a palavra “vovô” e ele quase não agüentou de tanta emoção.  Achou todos muito gordos e nem reconheceu Claudionor, de infância tão franzina, e agora tão obeso.

Todos ficaram muito emocionados. Sentiram, verdadeiramente,  uma vontade imensurável de fazer parte daquilo, daquela família. Estavam, ao mesmo tempo,  agradecidos por terem estado este tempo todo reunidos, por terem  deixado de lado viagens, passeios e outros programas mais atraentes, para estarem ali, reunidos, numa data tão importante e num momento muito especial para as vida de DonaVirna, Sr. Walter e da pequena Isabela. 

Sr. Nino não tinha palavras. Preferiu voltar ao seu canto e experimentar, sozinho, aquelas doces imagens. Dizem que ele assistiu àquele DVD a noite inteira. Só lá pelas cinco da manhã, sem importar-se com a forte dor que sentia no peito, sentou-se na cadeira de balanço para descansar. Quando os primeiros raios do novo ano surgiram, o alfaiate sorriu como não fazia há pelo menos seis anos. Depois, segurou firme a mão de Dona Ieda e colocou-se à caminho da luz.    

O barulho da chaleira o despertou. Ainda sem poder se situar no tempo e no espaço, levantou-se e caminhou até a sala de estar. No local, não encontrou aparelhos de DVD nem cadeiras de balanço. Olhou para sua velha Telefunken, de imagens em preto e branco, com o tubo de imagem fudido, e se benzeu. Jogou de lado o medo de avião, o orgulho, a acomodação e a teimosia. Pegou a passagem mandada por sua filha e rumou aos Estados Unidos. No Free shop, comprou um discman,  um cd do Cazuza e descobriu que a solidão é mesmo pretensão de quem fica, escondido, fazendo fita.


Por: Henrique Biscardi

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O SEGREDO DE PEDRO

Acordou sem pressa e com pouca disposição para mover-se. As mãos caminharam, sozinhas, até o controle remoto da televisão, mas nada de interessante passava. Ouviu os primeiros barulhos que vinham do andar térreo.  Nenhuma mensagem direcionado a ele. Mesmo assim, reuniu todas as forças e, a muito custo, conseguiu colocar as cobertas de lado. Esboçou levantar-se, mas uma letargia e falta de ânimo, lhe jogaram de volta à lona.  Só mais meia hora – pensou.

Um barulho na janela despertou-lhe de vez. Pela janela, viu Bob e Bryan começarem uma guerra com bolas de neve. Eles o desafiaram a descer. Não foi o tamanho, porém, que deteve aquele menino, o menor da turma, no quarto. Pedro detestava o frio; e mais ainda, seus primos, aos quais respondeu levantando lentamente, e com cara de mau, o dedo médio.

Desceu as escadas coçando a lateral da bunda, com cara de sono, trajando pijama flanelado e meias. Seu avô achou a cena engraçada. Sua mãe, não:

- hei! que modos são esses? Sobe, sobe, sobe. Lave esse rosto, escove os dentes, tire esse pijama e só me apareça aqui embaixo com este cabelo penteado!

Pedro era um menino introspectivo, não gostava de muita badalação. Era mais de curtir seus heróis e criando histórias com os bonecos dados por seu avô. Embora tivesse apenas cinco anos, tinha para mais de 30 daqueles personagens, saídos das histórias infantis. Não era seu primeiro Natal com a casa cheia, mas nunca havia passado a data fora de seu país.  Era também um tempo de descobertas, em que já começava a compreender mais as coisas do mundo.

Foi nesse período que, ainda na escolinha, ouviu os primeiros rumores sobre a verdadeira identidade de Papai Noel. Mas como era próprio de sua personalidade, ficou de longe, ouvindo e racionalizando a respeito.  Não concordou, não discordou, não questionou. Pelo menos, aos seus colegas:

- Vô, por quê essa gente toda? Queria estar em casa com meus brinquedos.
- Ah! Meu neto. Você não queria estar aqui com o seu avô?
- Queria vovô!... Mas lá em casa.

Pedro gostou do abraço e do beijo que ganhou do avô, mas não o obedeceu quando este lhe sugeriu que colocasse o casaco e fosse até lá fora brincar com seus primos. Preferiu a cozinha:

- Sai daqui menino! Tira essa luva das rabanadas! Essas luvas estão sujas! Vá brincar, vai! –  disse sua avó, o expulsando.

Sem ter muito para onde ir, foi encontrar sua irmã que, no sótão, arrumava, com uma tia, os últimos enfeites de Natal:

- Venha cá, pequeno, o que você quer? Dá um beijo gostoso aqui na mana, vai. Que carinha é essa? – disse envolvendo-o como se ele fosse um bebê.

  - Táta...se o papai não veio com a gente, quem vai trazer o meu presente? Ele vai chegar ainda?
- Oh! Meu bêbe. Vai sim. Papai já ta chegando. Mas que história é essa? Quem vai trazer seu presente é o bom velhinho, o papai Noel. A mana não ajudou você a escrever sua cartinha?

Pedro olhou com os olhos um pouco arregalados para Tatiana e nada falou. Preferiu guardar para si “o segredo”. Quando chegou à porta do quarto, ainda pensou em retornar e lhe contar a verdade, mas sua irmã estava tão feliz que preferiu nada falar. Quando descia as escadas, deparou-se novamente com o seu avô:

- Está indo para onde, hein, seu moleque – indagou Sr. Alfredo, fechando-o a passagem de um lado e de outro, fazendo-lhe cócegas, até lhe pegar pela barriga e levantar-lhe até seu colo – está pesado, hein! Quer ajudar o seu avô a engraxar os sapatos?

Era tudo o que Pedro queria: ter o que fazer. Sempre atencioso e carinhoso, seu avô também lhe pareceu, naquele momento, a companhia ideal, com quem ele pudesse ter uma conversa definitiva, franca, de homem para homem, sobre aquele assunto que estava lhe proporcionando algum desconforto:

- Vovô!
- Diga, meu neto.
- A Táta não sabe quem é o Papai Noel!
- Não! Jura? E você sabe? – Pedro fez com a cabeça que sim – e, você pode contar para o Vôvo. Eu juro que guardo segredo.
- Não conta para Táta? 
- Claro que não! Juro! – disse, fazendo um “X” com os dedos e os beijando.
- Vovô...é o papai!!! – disse numa felicidade imensurável.
- xiiiii! Fala baixo – disse Sr. Alfredo, enquanto Pedro tampava a boca com suas mãos pequenas, sem tirar o sorriso, por aquela grande descoberta, do rosto.
 - Mas é? Seu pai é o papai Noel? Tem certeza?

E o garoto permanecia ali, vibrante, com aquele sorriso cativante no rosto, feliz da vida. Tanta alegria, tanta satisfação em saber que seu pai era Papai Noel, deixou Sr. Alfredo sem saber o que falar. Antes que ele pensasse em alguma coisa, porém, Pedro lhe surpreendeu novamente:

- Vovô!
- Hein. Diga, meu neto.
- O senhor também já foi Papai Noel?

Após um breve silêncio, o patriarca da família foi salvo pela chagada de seu filho, Ari, pai de Pedro. Mas antes de sair, sem querer deixar seu neto sem resposta, o avô olhou para seu neto e colocou o dedo indicador cruzado nos lábios. O menino sorriu, fez o mesmo e ambos desceram as escadas até a sala de estar.

A tarde caiu e a noite logo chegou. A mesa estava posta e os adultos conversavam. Bob e Bryan, sentados ao chão, divertiam-se com um trem que se deslocava em círculos. Pedro os observava, encostado ao sofá. Próximo à meia-noite, ouviu-se um grande estrondo na parte superior da casa e todos se engalfinharam pelas escadas. Queriam ser os primeiros a ver Papai Noel.

Pedro não saiu do lugar. Observava, ao longe, seu pai e seu tio conversando longamente à beira de uma lareira, numa outra sala em anexo. Olhou também para o relógio e viu que ainda faltavam quinze minutos. Abriu um discreto sorriso, quando um a um desceram as escadas, decepcionados. Mas quando, após um breve descuido, perdeu Sr. Ari de vista, desesperou-se. Percorreu todos os cômodos da casa. A cada pessoa que perguntava, a mesma resposta – estava aqui agora, já viu na cozinha.

Passados alguns minutos, cada mãe pegou seu filho pelas mãos e os colocou para dormir. Foram preciso uns três para segurar Pedro.  O menino estava determinado e quando percebeu que não tinha como resolver na força, deitou-se, aparentemente, resignado. Quando, do lado de fora, as luzes se apagaram, arrostou-se pelo chão até o sótão. No local, havia um velho baú que guardava, entre outras bugigangas, um velho binóculo, de seu avô. Uma veneziana, semi-aberta, foi o suficiente para que ele visualiza-se as chaminés.  

O cansaço e a longa esperam derrubaram Pedro. Os olhos ainda resistiam, ora viçosos ora desnorteados. Porém, um estalo e uma nuvem de fumaça branca o despertaram.  Luzes coloridas iluminaram as lentes de seu binóculo. Ouviu um barulho de helicóptero e uma corda brilhosa, em vermelho e verde, despencou por entre a névoa esbranquiçada. De repente, a visão: Papai Noel. Com todo o cuidado, o bom velhinho bateu à janela e entregou ao Sr. Ari e seu cunhado um grande saco grande.

Pedro afastou os binóculos cuidadosamente. Enxugou as lágrimas dos olhos e os levou de encontro novamente às lentes. Não havia dúvidas. Era mesmo seu pai que, embrulho por embrulho, recebia das mãos de Papai Noel, cada item de cada carta escrita e enviada. Aos poucos, a decepção pela descoberta de que o bom velhinho não era seu pai foi sendo substituído por uma outra alegria – Papai Noel não é meu pai, mas Ele existe – voltou a sorrir o menino.

Correu, então, novamente para a veneziana e com o binóculo em punho colocou-se em posição para dar uma última olhada em Papai Noel. Para sua felicidade, o bom velhinho ainda se preparava para partir; e antes que sumisse por completo na nuvem de fumaça,  olhou firme na direção de Pedro, colocou os dedos nos lábios, em forma de X, piscou os olhos e só depois, se foi.

Pedro voltou para o seu quarto, caminhando lentamente, mas sem a preocupação anterior em ser pego ou descoberto. Entrou no quarto, ainda em estado de choque. Deitou-se, cobriu-se.  Ficou, por alguns minutos, parado, estático, olhando para o nada. Depois, sorriu, olhou para o seu boneco do Toy Story  e lhe confidenciou.

– Não é o papai, Wood. É o vovô – risos.

E Pedro dormiu radiante, em seu Natal inesquecível.


Por: Henrique Biscardi

sábado, 18 de dezembro de 2010

ENQUANTO BEATRIZ DORMIA

Pensei em lhe contar muito do que vi por lá. Falar das coisas que aconteceram, sobre os lugares por onde andei e as experiências por que passei. Sua vontade de me beijar, porém, me pegou de surpresa.  Você nem reparou, minhas malas flutuavam dependuradas sob meus ossos, testando a resistência de minhas mãos. Condenei-me pelo tempo que passei fora e por não ter correspondido aquele abraço, aquele carinho, aquele beijo. Fiquei ali, imune e imóvel. Insensível, acrescentaria.

Mas ela deu de ombros. Abraçou-me com toda a intensidade, como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Em seus braços, sumi. Envolveu-me com tanta força que parecia ter estilhaçado tudo dentro de mim. Seu corpo tremia, seus olhos brilhavam e seu sorriso era bem maior do que o meu caráter. Seus dedos afundaram-se no algodão de meu casaco e sua língua estava macia e quente como um brigadeiro que acabara de sair do fogo. E eu ali, apagado, inerte, preocupado apenas em lembrar-me de onde havia colocado o ticket do estacionamento.


Só depois de alguns minutos todos perceberam que eu não estava só. Ana me soltou e outros tantos vieram e me abraçaram Apresentei-lhes a minha nova empresária com indisfarçável desconforto. Todos a cumprimentaram surpresos e decepcionados. Ana se esvaiu. Tentei lhe acompanhar, mas ela desapareceu por entre pessoas, carrinhos e bagagens. Queria me explicar,  lhe pedir perdão. Mas antes que eu pudesse, ela desapareceu.

Carregaram a mim e a minha bagagem até o carro. Quando cheguei em casa, meu sorriso estava amarelo e Raquel preferiu hospedar-se num hotel. Tentei explicar em vão quando não se tratava propriamente de uma namorada. Com tantas viagens e ela resolvendo tudo para que eu me ocupasse apenas de meu jogo de Tênis, acabou rolando alguma coisa. Ficaria na cidade apenas por três dias, a fim de fechar alguns contratos publicitários. Nada a mais.

Raquel foi embora e depois de alguma insistência, consegui agendar um jantar com Ana. Eu ainda a amava, com certeza. Ana era a coisa mais importante da minha vida. Deixaria minha carreira por ela, mas isso já tinha sido discutido. Cinco anos fora, o que ela esperava? 

Estava resolvido a construir minha família. Havia largado o circuito e estava fechando um contrato com uma emissora local para tornar-me comentarista. Provavelmente seria o meu último contato com minha empresária, mas o que poderia ter feito? Vocês acham mesmo que eu poderia ter dito: “Desculpe, Raquel, apesar de todo esses anos cuidando de minha carreira, não posso deixar você ter participação nesse meu último contrato por que minha ex-namorada não pode saber de sua existência”?

Ana Buscou-me em casa, pois não me recordava direito sobre ruas e lugares. Recebeu-me carinhosamente e trocamos alguns olhares durante o trajeto. Estava nervoso. Muito nervoso. Ela também. Seus lábios tremiam. Mas ela estava linda. Chegamos em pouco tempo e não havia mais espaço para se evitar um contato. Tomei a iniciativa, aproximei-me e dei-lhe o braço. Ela aceitou o meu cavalheirismo. Entramos:

- Obrigado pelo convite – agradeceu-me
- Era o mínimo que eu podia fazer. Você foi tão afetuosa em minha chegada.
- Eu sei. Olha, desculpe. Sei que não deveria..
- Como não? Eu é que deveria ter te preparado de alguma forma para a ocasião.  
- Ah! Deveria mesmo!
- Calma, Ana. Não viemos aqui para brigar, certo?
- Sim. Desculpe. É que, é que...como você pode ser tão canalha!?
- Acho que forcei uma barra. Não estamos preparados para termos essa conversa.  
- Do que você está falando, Cláudio. Nós nunca vamos estar preparados para ter essa conversa! Sabe por quê? Sabe por quê, Cláudio? Porque você é um canalha! Conversa nenhuma vai mudar isso! Passe-me a carta de vinhos, por favor.

Achei melhor não contestá-la. Optei por deixá-la desabafar e achei boa, a idéia do vinho. Sei que seria uma longa conversa. Mas tinha algumas cartas na manga. Afinal, nós havíamos terminado o namoro, em nosso último encontro. 

Pedimos o vinho, o jantar e comemos alguma coisa da cortesia oferecida pelo restaurante:
- O patê está ótimo – disse, enquanto ela sorria embaraçada – desculpe, esqueci que você não come.
- Olha, Cláudio...
- Sim.
- Seu irmão me procurou, sua irmã me ligou, minha mãe me ligou. Então, vamos acabar logo com isso, né? Não vai haver reconciliação, ok?
- Mas, você não está entendendo o que aconteceu. Raquel...
- Não fale nela comigo! Aquela pintinha preta acima dos lábios, feita no lápis, já me diz, suficientemente, o que preciso saber sobre ela.
- Você está tirando conclusões precipitadas.
- Deixa eu falar – retrucou diante de minha tentativa de interromper uma trajetória do discurso que não parecia que me seria favorável – Eu pensei bem durante esses cinco anos que você passou competindo na Europa. Senti muito a sua falta. Tentei me distrair, me ocupar com outras coisas e como deixamos livre, um ao outro, no momento de sua partida, até tentei me envolver com outras pessoas. Não consegui. Nos últimos dois meses, e Deus é testemunha, só pensei em te ver de novo. E te abraçar, te beijar, te levar para casa e fazer amor com você pelo resto de nossas vidas. Mas, naquele dia..
- Ah! Está vendo? Você também tentou se envolver com outra pessoa! E agora fica aí, me condenando.
- Escuta aqui, seu canalha – disse, segurando firme a faca, acho que sem a intenção de me agredir – quando você partiu, nós combinamos que deixaríamos a coisa acontecer naturalmente. Falamos inclusive, que seria uma prova para ver se nosso amor era mesmo aquilo que imaginávamos. E se alguém, no meio do percurso, descobrisse  o contrário, o primeiro a saber, seria o outro.
- Mas, eu não encontrei ninguém. A Raquel...
- Já falei para não pronunciar o nome de sua amante nesta mesa. Se você voltar a convidá-la para o nosso jantar, eu vou me retirar. Fui clara? 
- Está bem, conclua, então.  
- A verdade, Cláudio, é que você, culpado ou não, destruiu o que sentia por você, dentro de mim. Aquele dia, eu estava imensamente feliz com a sua volta. Preparei tudo para te receber...me preparei também. Quando te vi, meu coração saiu pela boca, parecia que você estava vindo para mim pela primeira vez em minha vida, em nossas vidas. Mas quando eu te abracei, percebi que quem estava ali, nos meus braços, me beijando, me acariciando, era outra pessoa. Não era você. Fui para casa e chorei, chorei, chorei. Chorei mais do que nos cinco anos em que você esteve fora. Parecia que eu tinha ficado viúva e acho que fiquei mesmo! Eu sei que você é o mesmo, sei que quem está aqui na minha frente é o Cláudio. Eu consigo te reconhecer como aquela pessoa amável, carinhosa e bondosa por quem me apaixonei. Pode ser loucura, mas aqui dentro, no meu coração, porém, você morreu. E tem sido uma tortura essa sua volta. Desculpe eu te falar isso...Mas eu preciso! Cada vez que ouço falar em você, cada vez que meu telefone toca, cada vez que lembro que você está aqui, tão perto e tão distante, eu choro, eu sofro. Então, Cláudio, vim até aqui para te pedir uma coisa. Sei que não deveria. Sei até que não tenho esse direito. Mas eu preciso. Preciso que você vá embora da Cidade. Olha, se eu pudesse, eu mesmo iria – prossegui segurando fortemente as minhas mãos – Mas eu não posso.  Você sabe que eu não posso. Você não! Você tem vários opções em sua vida, tem até lá a vagabunda te esperando. Vá embora, Cláudio. Você pode treinar em qualquer lugar do país, qualquer clube vai dar milhões para lhe ter. Você é novo. Ainda consegue jogar por, no mínimo, mais dois ou três anos. Por isso eu te peço. Te peço, não. Te imploro. Eu não agüento mais este sofrimento. Faz isso por mim? Você pode fazer isso por mim?
- Eu vou. Você me pede, eu vou. Vou porque te amo. Vou porque sei que cometi um grande erro. Talvez eu até pague a conta pelo resto de minha vida. Então, como último pedido, quero apenas que você reflita sobre uma coisa. Você tem razão, quando diz que posso jogar por mais dois ou três anos.  Está certa também quando percebeu  que aquela pinta acima dos lábios, feita de lápis, já dizia tudo mesmo sobre  a Raquel. Então, pense e responda: Por que resolvi largar tudo, toda a minha vida, todo o resto de minha carreira e voltar a viver aqui, agora, em nossa cidade? A minha resposta é  porque eu não conseguia mais viver longe de você. Agora, Qual é a sua?

Depois de quase um ano, estava de volta àquele aeroporto. Caminhei até a porta do elevador por três vezes e voltei. A ascensorista riu e me sugeriu as escadas. Num impulso, entrei e respirei. Apenas um andar. Passos infinitos, bem devagar. Sentei-me:

- Olá
- Olá
- Não precisava ter vindo.
- Eu sei. Mas quis vir.
- Ok?
- Ok.
- Então...vamos?
- Vamos. Já despachou suas malas?
- Sim – disse com um sorriso nervoso nos lábios.
- Eu conheço este sorriso.
- É, eu sei.
- Você acha que devemos?
- hum...acho que sim.

Até hoje, não sei dizer o que deu errado naquele primeiro reencontro ou o que deu certo neste último, há mais ou menos três anos. A única coisa que sei é que amar é um grande desafio, uma grande entrega, um mergulho, um “dar e receber” incondicional. Um exercício que tento aprimorar a cada dia, pois sei o quanto o amor é frágil, o quanto nós somos frágeis. Mas aprendi, nesses últimos anos, que quanto mais a gente tem consciência de nossa fragilidade, mais forte nos tornamos. Enquanto Beatriz , nosso lindo bebê, dorme em meus braços, reflito sobre o quanto nos tornamos fortes, conhecendo nossas limitações. Diante de nossa aparente fragilidade, Ana apenas nos observa e sorri, alimentando-se para nos alimentar, com o seu amor. 

 Por: Henrique Biscardi

domingo, 12 de dezembro de 2010

Chupa essa manga, Eduardo!

Atravessou a avenida, faceira, curtindo as buzinas em sinfonia. Foi-se embora e nem foi xingada. Uma linda medusa. Madeixas de mel, bumbum arrebitado, seios pontiagudos e um vestidinho estampado em vermelho. Do outro lado da rua, seu Said. O típico. Calça social e chinelas. Suspensório e camisa social. Na cabeça, oficialmente, apenas uma boina francesa.

Eduardo, na sombra de uma árvore. Boca melada de manga, lábios molhados de desejo. Era um pecador confesso, daqueles rejeitados até no inferno.  Kichute, cadarço amarrado no meio das canelas. Mais brancas encardidas, com marcas de bola. Calça "pescando siri" e camisa aberta até o umbigo. Seus olhos de luxúria não foram notados por aquele pobre homem que o atendia com toda educação em seu armazém.

Bateu o ponto ali, todos os dias, durante cinco longos anos. Cresceu vendo aquelas coxas se transformarem em duas toras. A academia era nova, mas o hábito recente. A sala de musculação ficava lotada, às segundas, quartas e sexta, entre 8h15 e 9h30 da manhã. Foi nesse lugar o menino virou homem ,e sentiu-se encorajado. 

Mas Betina não lhe deu muita atenção e uma tragédia logo  tirou a moça de seu caminho pela primeira vez. Seu Said a esperava, como de costume, do outro lado da avenida. Antes que o destino lhe roubasse a vida, o pobre libanês antecipou-se. Pulou na frente de um caminhão, cuja cabine, de tão alta, permitiu que o motorista visse apenas o rosto da moça. O pobre homem, esfacelado no chão, ainda conseguiu sorrir para a sua amada, incrédula, viva por fora e morta por dentro.

Betina mudou-se e Eduardo, desgostoso, foi para o exército. Fez curso para sargento das armas e perambulou por várias cidades do país. Disseram que até no exterior ele esteve. Quando retornou, seus pais e a vizinhança por quem tinha algum apreço, já haviam se mudado. Sem muitas opções, Eduardo também se foi e acabou como guarda-vidas em uma mansão, em Angra dos Reis.  

Foi quando numa bela e quente manhã de domingo, sua sorte mudou. Deitado ali, a sua frente, Betina ressurgiu. Linda, malhada e turbinada.  Eduardo, descontrolou-se e quando deu por si já havia molhado metade das pessoas que pegavam sol à beira da piscina. Como era bem quisto pela família,  preferiram não chamar-lhe a atençao. Betina, não:

- O que é isto, rapaz? Preste atenção no seu serviço!

Por alguns instantes, ficou na dúvida se aquela pessoa, diante de seus olhos, fosse mesmo Betina. Mas logo a moça deitou-se na espreguiçadeira e a tatuagem na altura da virilha afastou qualquer possibilidade de erro:

- Amor! Vamos! Tenho um compromisso social e preciso de você ao meu lado - disse alguém, com aquele ar de "maridão".  

Betina levantou-se suavemente e enrolou-se na canga.  Eduardo chegou a ouvi-la murmurar algo e lhe ofereceu um afetuoso sorriso, o suficiente para irritá-la novamente:

- Por que você sorri? Quer que eu lhe faça chorar? Quer que eu lhe faça sofrer? Cruze seu olhar novamente com os meus e você verá o que será de ti - disse a moça num tom ameaçador. 

O clima pesou. Eduardo nada entendeu. Menos ainda, quando seu patrão o chamou, meio da madrugada, deu-me algum dinheiro e lhe ordenou que "sumisse do mapa".

Eduardo viajou, uma vez mais, sem rumo. Por sorte, encontrou  um amigo de infância num navio e este o instalou em Miami. Um dia, porém, andando pela Times Square, já em Nova York, deparou-se novamente com Betina. Olhou em sua volta e ao perceber que a moça estava desacompanhada, a surpreendeu:

- Então,  o que lhe  fiz para querer o meu fim?
- Desculpe. Não estou entendendo. Quem é você?
- Ora! Não se faça de desentendida, Betina. Este é seu nome, certo?
- Sim. Mas.., como sabe?
- Cadê o maridão, hein? Cadê? Ele vai me matar, vai? Vai me matar?
- Ele não pode. Ele morreu. Faz uns 8 anos, tadinho. Morreu atropelado para me salvar.
- Sei. E depois que ele morreu, hã? Pensa que não lhe reconheci naquela mansão em Angra? Por que  me queria longe de lá, hein? Por que?  
- Não era eu! Você deve ter tido a infelicidade de conhecer minha irmã. A cléo. Nós somos gêmeas!
- Gêmeas? Que papo é esse?

Betina baixou a cabeça, levou as mãos ao rosto e chorou, copiosamente. Logo, perdeu as forças e apoiou-se em Eduardo. Ele a levou para seu apartamento onde puderam, finalmente, esclarecer o acontecido:

- Depois que meu marido morreu, minha irmã gêmea juntou-se a seu namorado, um estudante de direito. Os dois me roubaram - colocou-se em pranto, novamente, a moça - e não satisfeita, mandou alguém para me matar. Tive muita Sorte. Dona Ziza, amiga de sua mãe também, lembra-se? Pois bem,  foi ela quem me escondeu por alguns dias. Depois, deu-me algum dinheiro e fugi para cá.

O rapaz olhou incrédulo para aquele rosto lindo e angelical . Betina, aquele mulherão, aconchegada em seus braços. Maravilhosamente, aconchegada. Chegou a pensar em como um mesmo casal pode gerar, num mesmo ventre, ao mesmo tempo, pessoas tão antagônicas. Vã filosofia que se perdeu logo em seus pensamentos, enquanto se fartava naqueles seios firmes. Finalmente, eduardo a amou. Depois, adormeceram juntos,  naquela e em outras noites frias. Num domingo, porém, Eduardo amanheceu estranhamente algemado na cama, com a boca suja de manga e a casa cercada por sgentes do serviço secreto americano, o FBI. Já Betina, embarcava num vôo qualquer, rumo à Madri, com o corpo recheado de explosivos e a esperança, encorajada por seus cúmplices do Brasil, de reencontrar Said.  


Por: Henrique Bicardi

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MARCELA E A PINTA VERMELHA

Marcela detestava acordar cedo. Foi Marcelo quem passou por cima dela e alcançou o despertador. Os dois se levantaram sem muito ânimo. Olharam o céu azul cravejado de estrelas. Elas brilhavam foscamente diante dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte. A sonâmbula guardava ainda um sopro de esperança de que o tempo havia mudado e que talvez chovesse. Mas não chovia.

Ele desceu logo as escadas e começou a colocar as coisas no carro. Ela demorou-se duas horas a mais que o normal. Primeiro, no banheiro. Depois, diante do espelho, sem imaginação e disposição para ver o que lhe cabia.

Coube-lhe alguns segundos de resignação, tempo que aproveitou para deflagrar sobre si alguma fragrância e deixar cair sobre seu corpo longilíneo um leve estampado bege. Desceu as escadas com suavidade, como quem preferia não ser notada.

Uma xícara de café não foi suficiente para lhe despertar. Caiu em sono profundo por alguns quilômetros. Despertou ao som de Pearl Jam e até curtiu por alguns instantes a paisagem. Depois da parada para um pipi, subiu as pernas acima do porta-luvas. Algodão entre os dedos e um palito com algo macio na ponta, molhado de acetona, lhe divertia.

Marcelo permanecia calado. Passados alguns quilômetros, ingenuamente, balbuciou algumas palavras solenemente ignoradas. Tentou uma música mais romântica e arriscou uma apalpada nas coxas de Marcela. Ela, reclamou que o esmalte lhe borraria as unhas, mais para se livrar daquelas mãos do que por qualquer outra razão.

Mas a mão de Marcelo lhe feriu mais do que às suas unhas. Talvez ela não tivesse ainda se “dado conta” de sua presença.  Quem sabe estivesse tendo um pesadelo? Mas não estava. Marcela descobriu-se pensativa e começou a interrogar-se sobre aquela situação.  Dos questionamentos à indignação passou uma fração de segundos, tempo em que Marcelo parou para uma segunda mijada:

- Você acha que vale a pena viajar assim?

- Ué! Você não quis vir?

- Claro!  Você acha que eu rasgo dinheiro. Está pago, não está? Ou você acha que eles vão me devolver mil e duzentos reais porque minha esposa está com crise existencial?

- Marcelo! Liga a porra do carro e vamos embora. Não começa que eu volto daqui mesmo.

- hahahahahaha. Como? De jegue?

Marcelo tinha idéia da encrenca que estava por arrumar e a chamou de volta para dentro do carro. Marcela pegou o celular e falou coisas sem importância com a mãe. Depois, reclinou mais o assento e tampou os olhos com o braço direito. Tentou dormir, mas acontecimentos recentes borbulhavam em seus pensamentos. O que mais lhe incomodava naquele momento não era aquele pano de prato que custara 1,99, presente dado por sua sogra no último natal. Um elefante de cerâmica marrom, obra de arte feita por sua cunhada, lhe causava náuseas: 

- Sabe o que é, Marcelo? Não dá. Nós dois caminhamos por trilhas diferentes, nos afastamos, nossas afinidades se esvaíram com o tempo. 

- Do que você está falando?

- Da porra do elefante marrom, por exemplo. A gente trocou a tv de tubo por uma nova,  de Led. LED Marcelo!  Aquele elefantinho não tem nada a ver.

- Mas foi minha irmã quem fez!

- Fez e nos deu, né? Vê se ela tem algum na casa dela? Porra! Já era, acabou. Tira uma foto, pinta um quadro, deixa ele cair no chão sem querer, sei lá. Mas tira aquele elefante da nossa sala, por favor.

- Está bem. Vou tirar, vou tirar.

- Vai porra nenhuma! E também não quero que você tire. Na verdade, Marcelo, eu quero que você me tire da sua sala, da sua vida, sei lá.

- Mas do que você está falando?

- Não sei, Marcelo. Mas a gente está infeliz, porra! A gente nem trepa mais! Quanto tempo faz, hein? Seis meses? um ano? A gente não tem filho, Marcelo. Não chegamos nem nos 30. Porra! A gente era para trepar todo dia, enlouquecidos. Até um ano atrás, você queria comer meu rabo todo dia, agora nem minha bunda você olha mais, Marcelo!

- Não exagere, Marcela. Não exagere.

- É exagero, é exagero! Então fala...fala! Em que lado da minha bunda eu tenho uma pinta vermelha?

- O que? Porra, Marcela! Eu estou dirigindo.

- Fala Marcelo. Responde pra mim que eu chupo seu pau aqui, agora, como se a gente tivesse dois meses de namoro e não cinco anos de casados.

- Tá doida? Eu estou dirigindo, Marcela. Dirigindo! Você quer que eu bata a porra do carro? O que é que você quer? Quer matar nós dois é?

- Nós dois estamos mortos, Marcelo! Estamos pateticamente mortos. Dois jovens, cheios de vida, cheios de tesão, sentados em frente a uma tv escrota, num domingo, vendo Faustão. E você ainda ri das coisas que ele fala, Marcelo. A mesma piada. Cinco anos, Marcelo e você ainda ri! Eu sorrio é da nossa relação. Eu dou gargalhadas da nossa relação. Agora responde! Responde porra!!! Em que lado da minha bunda fica a pinta vermelha, hein.



- Direito, Marcela! Direito! A porra da pinta fica do lado direito do seu corpo.

Marcelo e Marcela se separam antes do verão passado. Soube por ele, que aquele boquete foi o contato mais íntimo que eles tiveram ao longo dos seis meses que ainda ficaram juntos após aquela viagem. Soube também que a menina recuperou o tempo perdido e hoje é atriz da indústria pornô. Criou seu próprio site, faz striper na web cam e está ganhando rios de dinheiro. Já meu amigo, continua em jejum, grudado ao seu elefante marrom, assistindo Faustão.



Por: Henrique Biscardi