quarta-feira, 27 de julho de 2011

A ENTREGA DE MALÚ

O vento soprou forte naquela tarde de outono em São Paulo. Folhas e galhos retorcidos cobriam parte da calçada por onde passou aquele par de botas, de passos firmes e apressados. Um perfume conhecido invadiu o oitavo andar do velho prédio da rua Castanheira, onde olhos enfadonhos observavam a fina chuva cair, saboreando uma taça de um bom vinho chileno qualquer.

Porém, há muito, os dias não eram tão solitários assim para João. Na primavera passada, o rapaz conheceu Letícia. Olhos fortes e penetrantes, “a ruiva do Belenzinho” havia lhe enfeitiçado – diziam alguns amigos. O certo é que aquele homem, reconhecidamente equilibrado, passou num piscar de olhos a um Sodoma desvairado, segundo comentários que surgiam entre moradores e porteiros, em alusão às tardes quentes de sábado que se repetiam no apto. 803. 

Malú soube por Laura, uma prima confidente,  que era tudo verdade. Difícil era imaginar aquele homem, pijama de flanelas e uma calmaria que lhe aplacava o cio, fazendo as coisas que ela descrevia. Entretanto, o acaso permitiu que Roseli, uma colega de seu trabalho, lhe desse o serviço. Ocorreu que numa tarde João a convidou para subir a seu apartamento, de onde só saiu, extenuada, molhada e febril, depois de provar prazeres que jamais sentiu.   

Naquele sábado, João pressentiu que Malú voltaria e quando a brisa lhe trouxe o cheiro, a porta da rua já estava aberta. A moça desceu do salto. Não houve sequer uma palavra trocada. As malas foram deixadas ao chão. Pés descalços caminharam ao encontro de João. Mãos, por entre braços, avançaram sobre seu peito. O rapaz, fechou os olhos ao sentir o rosto de Malú apoiar-se em suas costas. A moça deixou cair o sobretudo. Depois,  desabotoou a blusa feita de linha e desatou a presilha de seu sutiã. Mamilos rosados enrijeceram-se e se esquivaram de ponta a ponta, para cima e para baixo, naquele corpo já repousava sobre tábuas que rangiam na sala de estar.

Amaram-se loucamente sem trocar olhares. Seus lábios, não. Estes, conversaram longamente, oscilando entre o crivo e o ponderável.  Seus corpos se comunicaram como nunca antes. Suas mentes não se ocuparam das horas que se precipitavam. Houve sussurros e gemidos. Ouviu-se até um toque com o cabo da vassoura de algum vizinho mal amado. João buscava Malú de todos os jeitos, por todos os lados.  E ela, finalmente, se entregou.

Após a tempestade e no descansar do calor de seus corpos, houve tempo para se compartilhar a taça de vinho que  ela resolveu também degustar. João pensou em perguntar por seus longos cabelos, mas logo a moça recuperou o fôlego e decidiu testar, uma vez mais, João.  

A garoa passou e os primeiros raios de sol iluminaram corpos suados e extenuados que se espalhavam, parte no chão, outras pelo sofá. Um lençol branco cobria metade das coxas de Malú, sobre a qual repousava a cabeça de João. Seus lábios ainda arriscavam algum gracejo. O libido, porém, sucumbiu ao cansaço e eles desfaleceram, juntos.

Durante semanas viveram assim. Muito amor , poucas palavras. Até que, naquela segunda-feira, Malú sentiu-se diferente e chamou por João:

– Eu quero.

João segurou firme em suas mãos, desceu com a cabeça até seu ventre e após o beijar sua barriga, a respondeu:

– Eu também.

Por: Henrique Biscardi

quinta-feira, 14 de julho de 2011

OS CAMINHOS DE MALÚ

Uma vez mais, deixou sua cabeça repousar nos pêlos do peito de seu amado. Sentiu aquelas mãos fortes e macias percorrerem seus longos cabelos negros. Dedos, rapidamente, chegaram à sua nuca, puxando-a, com força, pelos cabelos. Sua cabeça pendeu, graciosamente, para trás. A moça arrefeceu o brilho dos olhos, fazendo-os desaparecer por entre suas pálpebras, cerradas de prazer. Segurou firme aquele braço forte e musculoso, chamando-o para ao entorno de seu corpo. Mordeu levemente seus lábios molhados.

À beira da cama, João ficou sem saber o que fazer. Não esperava encontrar sua mulher daquele jeito. Seu corpo formava com o colchão, um arco, apoiado numa ponta pela nuca e noutra pelos calcanhares. Rosto ruborizado, com  as narinas totalmente abertas. Os seios estavam duros e pontiagudos. Os braços se esticavam para trás. Cabeça esfregando-se levemente no antebraço, como gata no cio. O dorso ergueu-se ao limite. Seus músculos contraíram-se ao limite. De sua boca, pode-se ouvir um leve gemido, enquanto seu corpo, exausto, desfalecia na cama. 

Ao recobrar os sentidos, desfigurada, Malú percebeu a presença de João e demorou-se a abrir os olhos. Sentia-se fraca para falar sobre o que devia ser dito. Tinha consciência de sua loucura. Bem pior, no entanto, seria não reconhecê-la. Sabia que não havia amor maior do que o daquele homem. Precisava, porém, conhecer os seus próprios limites. É preciso coragem para se abrir mão de um grande amor, de alguém que lhe faça tão bem. Malú compreendia bem a sua angústia, a sua dor.

O rapaz tentou amenizar a situação. Porém, relutou em abraçar o corpo suado de sua amada. Temia reconhecer o cheiro que exalava de seu corpo, ainda em brasa. Buscou refúgio num resto de jornal , caído ao lado de uma cadeira. Cruzou as pernas e levou a mão ao queixo. A moça reconheceu aquela expressão e pensou em chamá-lo para junto de si. Quis tanto que ele ficasse bem que seus lábios emudeceram. A noite caiu, João foi embora e Malú voltou a sonhar.

Numa manhã ensolarada de Paris, João acordou e encontrou Malú com as malas prontas. Ela foi em sua direção e lhe deu um grande abraço:

– Obrigado por tudo. Agora, já sei por onde ir. Entenderei se não esperar por mim. Mas, um dia, eu volto. 

João abaixou a cabeça de Malú e  deu-lhe um beijo na testa:

– Feche a porta ao sair, por favor – disse-lhe enquanto se dirigia ao banheiro, arrastando o seu velho roupão.

Malú então surpreendeu-se com João e sorriu. Pelas ruas de Paris, até o aeroporto, sentiu que podia partir para a vida, sem culpas. Fechou os olhos, respirou fundo e deixou-se contaminar pela deliciosa sensação de liberdade. Verdadeiramente, no lugar mais profundo de sua alma, sabia que não se tratava de libertar-se de João. Não era ele quem a aprisionava. Desejava libertar-se de suas amarras interiores, de seus medos, traumas, acalmar-se de suas inquietações. Fez planos e desejou, de verdade, dar a João a Malú que ele merecia, a mulher que ela desejava ser.  Um caminho que ela precisava percorrer, sozinha.

 Por Henrique Biscardi

terça-feira, 5 de julho de 2011

QUEM QUER SER MALÚ?

Queria muito desafivelar os cintos e saltar. Pensou que, como Malú, fosse capaz de voar. Pensou que, como Malú, pudesse ser intenso, pudesse ter coragem, ser destemido, louco, irreverente, pulsão, desejo, tesão. Pensou mesmo que, como Malú, fosse capaz de muitas coisas.

As horas passavam lentamente e sua ansiedade só fazia aumentar. As janelas ostentavam, acima, um céu azul que lhe doía as vistas. Abaixo, o mar que Malú tanto amava. 

Servido o almoço, o  cinto preto que lhe cercava as cinturas trouxe-lhe uma sensação de luto. O cheiro da comida provocou ânsia e vômito. Trancou-se no banheiro e recostou-se no armário que se alongava, acima do lavabo. Desfaleceu. Não se sabe se a indignação maior vinha por parte da tripulação, dos passageiros e do próprio João. Retirado de seu sono, que desejava eterno, e de sua solidão, voltou-se para seu assento desejando, de verdade, ser aquele super herói de borracha que voava, dentro do avião, pelas mãos daquele menino, ingenuamente desprovido das angústias que a vida para todos reserva.  

Sentiu uma sensação de Déjà vu quando desembarcou em Paris e encontrou aquele céu carregado por nuvens negras. A esperada indiferença dos comissários e agentes do aeroporto contrastou com o afetuoso abraço de Regina. João não estava preparado para qualquer tipo de afeto. Tudo lhe emocionava. Chorou  copiosamente, enquanto Fernandes carregava sua bagagem até o carro.

No leito 5 da Unidade Intensiva do Hospital Central de Paris houve alguma animação quando a paciente agarrou com força o indicador da enfermeira que lhe aferia a pressão. Os médicos foram chamados, às pressas. Malú viu-se abrindo os olhos e chamou por João.

Quando criança, a menina acreditava mesmo que seus pensamentos moviam as coisas, mudavam os rumos dos acontecimentos. Por diversas vezes, foi assim. Com sua força mental, trazia mãe ou pai de volta para a casa. Era fechar os olhos, e desejar, que seu amor logo lhe telefonava. Numa briga, olhou fixo para uma Jaca e esta, imediatamente, despencou da árvore na cabeça de sua rival. Naquela manhã, acreditou que seus pensamentos lhe trariam João e que quando ele chegasse a Paris, como num conto de fadas, ela despertaria. 

Embaixo do chuveiro, o rapaz sentiu um arrepio e quando o telefone tocou, sentou-se à banheira e esperou. Regina esmurrou a porta  e gritou: Ela despertou! Despertou!  João partiu ainda com o corpo molhado, forçadamente enxugado nas roupas que se amontoaram sobre si. Chegou ao hospital com o coração para fora do peito. Correu pelos corredores, enquanto no leito, Malú se espreguiçava e erguia braços e lábios a sua espera.

Nos corredores, porém, havia quem pensasse diferente dos dois amantes. Médicos conversavam sobre sedativos e preservação dos sistemas neurológicos, enquanto seguranças tentavam conter João. O rapaz desferiu um golpe que arrebentou o nariz do médico e, com os ombros, derrubou dois enfermeiros que se colocavam à frente da porta principal da Unidade Intensiva. Ao lado do leito, após alguma luta, houve tempo para que a enfermeira aplicasse o sedativo. João lhe jogou ao chão e levantou o corpo de Malú ao seu peito. Antes  que uma descarga elétrica, desferida por uma arma da segurança do hospital, lhe jogasse ao chão, ele a viu sorrir.  

Foi preciso a intervenção de um amigo para libertar um orgulhoso João. O rapaz não entendia o porquê de se colocar em coma uma pessoa que, justamente, acabara de sair daquele estado. Acordou, feliz, na cela de um distrito policial da região. À noite, já acomodado no quarto de hospedes da residência de sua amiga, encheu-se novamente de coragem. Estava determinado a resgatar Malú.

Quando as luzes se apagaram por toda a cidade. Na madrugada fria de Paris, dois “sobretudos” entraram apressadamente naquele táxi que se moveu, sem direção, pelo Arco do triunfo. Pela manhã, houve correria pelos corredores do Hospital Central de Paris. Na delegacia, João prestava, imóvel, novo depoimento, enquanto Fernandes procurava algum apoio junto a representação diplomática brasileira na capital francesa.

Talvez, tudo seria evitado se tivessem avisado a João que Malú havia sido transferida para uma unidade semi-intensiva. Talvez a mulher que João raptou do hospital consiga resistir e sobreviva ao tempo que ficou longe da UTI. Talvez, Malú sinta orgulho de  João. Talvez João volte, algum dia, a ver Malú. Talvez.  

Por: Henrique Biscardi