quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Malú e a Prosa Poética

Custei a admitir que meus olhos também brilharam no brilho dos olhos de João. E não foi fácil para uma mulher como eu, livre, independente, com minhas calças rasgadas,  blusa jogada ao corpo, peitos a solta, cabelos cacheados e esvoaçantes, o símbolo da liberdade, diversidade, espontaneidade, qualquer “dade” dessas que rime com rebeldia e desconforto.  Não foi fácil reconhecer que algo me atraia naquele “engomadinho” que descia do ônibus, pontualmente, diariamente, invariavelmente com aquele sorriso que, francamente, não merecia nem um registro de minha mente, mas que meus olhos fitavam, assim, inconscientemente, reluzentes, o brilho dos olhos de João. E o pior! Eu via neles, capturado, o brilho de meus olhos, que brilhavam, desavergonhadamente, no brilho de seus olhos. 

A prosa poética foi proposital. Quem sabe, eu vendo escrito, quem sabe, publicado, não fique ainda mais ridículo? Meus olhos brilhando no brilho dos olhos de João. Isso é Patético! Eu não sei por que raios de motivação eu me via assim naqueles dias. O brilho de meus olhos no brilho dos olhos de João. Odeio prosa poética!

Foi quando eu me peguei de prosa com o “engomadinho”. Ele dizia coisas que meus ouvidos ignoravam. Eu, abduzida pelo brilho de meus olhos no brilho dos olhos de João, lutava contra os meus desejos. Cansada, cerrei meus olhos. Como quem escapa do brilho, como quem foge de si. Senti-me como as forças alemães, exauridas no inverno russo. Deixei-me apanhar, apreender, subjugar. Só por uns instantes. Quando ele tentou dizer algo, imobilizei-o. Você não queria tirar-me de minha negação – gritei à ele. Então, toma-me. 

Pobre João. Não imaginava o perigo que corria. Talvez o brilho de seus olhos não tivesse visto o fogo que   havia por trás do brilho de meus olhos. Senti pena dele. Acordava cedo, tomava banho, escovava os dentes, fazia e tomava o café, depois o ônibus. Atendia, simpaticamente, moços, moças e velhinhas. Voltava para casa, sempre engomadinho, ignorante do perigo que o cercava. Talvez, se soubesse, nunca teria se atrevido a olhar o meu decote. Nunca teria se atrevido a olhar, por curiosidade, quem era a dona daqueles peitos que o deixavam com água na boca.

João, porém, olhou. E eu , que queria apenas provocar o engomadinho patético do prédio da frente, também não devia aceitado aquele olhar. Se ele foi ignorante, confesso que fui muito, muito arrogante. Jamais pensei que uma mulher cabeça feita, depois de tantas arruaças, festas, bebedeiras e trepadas homéricas, uma mulher, cabeça feita (de novo?) letrada, escaldada, velha de guerra, do alto de SUA sabedoria conquistada a custo de tantos livros lidos, de tanta poesia escrita e de tanta filosofia de botequim proliferada, e alternada com tapas em guimbas de cigarros de maconha, como poderia imaginar, que uma mulher “dessas” poderia se deparar com o brilho de seus olhos brilhando no brilho dos olhos de um “engomadinho”?

Pobre João. Na manhã seguinte, derrotado, era o fel de stalingrado. Suas mãos, entristecidas, recolhiam os restos da batalha. O que seria daquele homem com camisas e calças “engomadinhas” jogado aos farrapos? Não pensei nisso quando desci as escadas, ainda pouco iluminadas, naquela manhã de sábado. Caminhei pela rua seminua, sorvendo o ar. João não foi o primeiro. Foi o único! Foi o único em quem enxerguei o brilho de meus olhos nos brilhos de seus olhos. E não há prosa poética que me faça esquecer disso.

Por: Henrique Biscardi