Custei a admitir que meus olhos
também brilharam no brilho dos olhos de João. E não foi fácil para uma mulher
como eu, livre, independente, com minhas calças rasgadas, blusa jogada ao
corpo, peitos a solta, cabelos cacheados e esvoaçantes, o símbolo da liberdade,
diversidade, espontaneidade, qualquer “dade” dessas que rime com rebeldia e
desconforto. Não foi fácil reconhecer que algo me atraia naquele
“engomadinho” que descia do ônibus, pontualmente, diariamente, invariavelmente
com aquele sorriso que, francamente, não merecia nem um registro de minha mente,
mas que meus olhos fitavam, assim, inconscientemente, reluzentes, o brilho dos
olhos de João. E o pior! Eu via neles, capturado, o brilho de meus olhos, que
brilhavam, desavergonhadamente, no brilho de seus olhos.
Foi quando eu me peguei de prosa
com o “engomadinho”. Ele dizia coisas que meus ouvidos ignoravam. Eu, abduzida
pelo brilho de meus olhos no brilho dos olhos de João, lutava contra os meus
desejos. Cansada, cerrei meus olhos. Como quem escapa do brilho, como quem foge
de si. Senti-me como as forças alemães, exauridas no inverno russo. Deixei-me
apanhar, apreender, subjugar. Só por uns instantes. Quando ele tentou dizer
algo, imobilizei-o. Você não queria tirar-me de minha negação – gritei à ele.
Então, toma-me.
João, porém, olhou. E eu , que
queria apenas provocar o engomadinho patético do prédio da frente, também não
devia aceitado aquele olhar. Se ele foi ignorante, confesso que fui muito,
muito arrogante. Jamais pensei que uma mulher cabeça feita, depois de tantas
arruaças, festas, bebedeiras e trepadas homéricas, uma mulher, cabeça feita (de
novo?) letrada, escaldada, velha de guerra, do alto de SUA sabedoria
conquistada a custo de tantos livros lidos, de tanta poesia escrita e de tanta
filosofia de botequim proliferada, e alternada com tapas em guimbas de cigarros
de maconha, como poderia imaginar, que uma mulher “dessas” poderia se deparar
com o brilho de seus olhos brilhando no brilho dos olhos de um “engomadinho”?
Pobre João. Na manhã seguinte,
derrotado, era o fel de stalingrado. Suas mãos, entristecidas, recolhiam os
restos da batalha. O que seria daquele homem com camisas e calças
“engomadinhas” jogado aos farrapos? Não pensei nisso quando desci as escadas,
ainda pouco iluminadas, naquela manhã de sábado. Caminhei pela rua seminua,
sorvendo o ar. João não foi o primeiro. Foi o único! Foi o único em quem
enxerguei o brilho de meus olhos nos brilhos de seus olhos. E não há prosa
poética que me faça esquecer disso.
Por: Henrique Biscardi
Nenhum comentário:
Postar um comentário