sexta-feira, 11 de maio de 2012

MALÚ E O CIGARRO DE BALI



Tentou disfarçar o seu descontentamento ao abrir, gentilmente, a porta para sua esposa e lhe estender a mão com um jocoso sorriso. A idéia do programa foi dele. Um cineminha, um chop...Malú topou na hora e o casal saiu feliz de casa, trocando carícias e elogios sobre seus trajes. No meio do caminho, João passou à moça o jornal e lhe sugeriu que escolhesse o filme. Foi aí que a coisa desandou:

– Uhu! Está escolhido – disse entusiasmada
– E eu posso saber qual é? – indagou o marido
– “Ele não está tão a fim de você” – Tenho certeza de que irá gostar. É com a aquela loira de bunda exagerada...e branca – disse Malú em tom debochado – Adoro comédias românticas.
– Romântica? Com esse título?
– Vai começar ? Você não disse para eu escolher o filme? Eu estou até lhe dando uma colher de chá!  Vou deixar você ficar lá babando na Jennifer Aniston e na Scarlett Johansson. Vamos fazer assim? Você fica olhando para essas duas, enquanto eu mato as saudades do meu Ben Aflleck.

Foi nesse momento que o silêncio se instalou, abalado apenas por mais observação entusiasmada de Malù.

– Caraca!. Bradley Cooper A-MO. Ele é tudo de bom. Lembra dele? Ele é o ator principal daquele besteirol que você adora, “Se beber, não case”.
– Eu sei quem é, mas ele não é o ator principal.
– Claro que é.
– Não é. O ator principal, logicamente, é o cara que não deveria beber porque ele estava para se casar.
– Ah! ta bom. Ele não é o principal. Diga-me, então, qual o nome do ator que faz o papel principal?
– Em qual filme?
– Não disfarça não. Você entendeu a minha pergunta. Qual o nome do ator que você disse aí que é o principal no filme “Se beber, não case” ?
– Ah! eu não lembro agora. Você sabe que eu não guardo nome de ator.

Malú colocou um leve e sarcástico sorriso em seus lábios. Preferiu não estender a discussão, porém, pensou: Não guarda nome de ator, mas sabe direitinho quem é Bradley Cooper.

Malú entrou na área dos cinemas e parou para diante do Banner promocional do filme, esperando encontrar mais informações. João, preferiu a cafeteria e disfarçou seu descontentamento lendo algumas notícias no jornal. Minutos depois, os dois se juntaram e entraram na sala de projeção.

Após meia hora, Malú começou a sentir-se entediada com a história. Como não queria “dar o braço a torcer”, esforçava-se para demonstrar algum interesse, comentando uma cena ou outra. João, aquela altura, já não se fazia de rogado e se permitia a alguns curtos cochilos. Foi quando, durante uma cena, Malú resolveu catucar João e o puxou pelo braço:

– Olha, comigo não tem essa história, não! Nem se fosse o Bradley Cooper, eu perdoaria.
– Do que você está falando?
– Olha pra lá, presta atenção no filme! Que horror! Chamar a mulher para ver um filme e dormir é pior do que não chamar, sabia? Você tem que me fazer companhia. Assistir o filme comigo, poxa.
– Desculpe, meu amor. É que esse filme, realmente...mas diga para mim, o que está rolando?
– A mulher do personagem do Bradley Cooper. O cara falou para ela que tinha uma amante e ela está pensando em perdoá-la.
– Ah! amor. Isso é filme. E, sei lá. Cada um é cada um e cada situação é uma situação.

O fato é que João aproveitou aquele conflito para prestar alguma atenção no filme. Talvez Fosse melhor se tivesse permanecido entretido em seus cochilos. A cena seguinte lhe causou um mal estar tão forte que não pode conter-se:

– Não entendi uma coisa, Malú. Ela não tinha perdoado ele. Por que está jogando as roupas dele escada abaixo agora?
– É uma simbologia, uma ideologia idiota do filme
– Simbologia? Ideologia? Você pode me explicar melhor?   
– Ah! não enche o saco, João. Você dorme praticamente o filme inteiro e agora fica querendo que eu te explique tudo.
– Custa você me explicar só isso?
– Saco! Presta atenção. Ele havia prometido a ela parar de fumar e ela achou embalagem de cigarros no bolso dele. Então, foi a gota d´agua. Ele é reincidente. Além de traí-la com outra mulher, ainda mente para ela em outros assuntos, entendeu?
– Entendi. Igual aquele maço de cigarros de bali que encontrei uma vez na sua bolsa. Aquele que você disse que era do seu chefe.
– O que tem isso a ver, João. De novo essa história?  Não! pelo amor de Deus. Já te falei que fui almoçar com o meu chefe , o tio Dinho, e na saída ele esqueceu os cigarros em cima da mesa. Eu guardei e escondi para lhe fazer uma brincadeira quando voltássemos ao escritório.  Só que lá, acabou que ele teve que entrar às pressas numa reunião e os cigarros ficaram na minha bolsa. Você sabe que não tem nada a ver. Ele é meu tio, irmão da minha mãe! Nós já conversamos sobre isso.
– Sim. Eu sei. Jamais pensaria uma coisa dessas. O problema é que você tem uma “amigo” que, coincidentemente, também fuma esses mesmos cigarros! 
– O Arnaldo é Gay, João. Quantas vezes eu já te falei isso.
– Isso é o que você diz, né? Eu nunca vi ele com outro homem e ele não tem pinta de viado, não.
– Ah! João. bom. Eu dei para o Arnaldo, pronto! Está bom assim? O que você vai fazer? vai se separar de mim? – disse rindo ironicamente – Deixa de paranóia, João. Você já viu meu tio fumando esses cigarros várias vezes, porra!  Agora, se você vai ficar imaginando coisas com todos os meus amigos que fumam cigarros de Bali, eu não posso fazer nada.

Não ouve mais uma palavra sobre o assunto naquela noite. No dia seguinte, Malú encontrou suas roupas jogadas ao chão, no pé da escada. Em cima das roupas, duas bolsas. No fundo de uma, um maço de cigarros de filtro branco, amassado junto a um recibo de embarque de avião. No fundo de outra bolsa, outro maço, nas mesmas condições, de outra marca. 

Malú recolheu suas roupas, colocou-as no porta-malas de seu carro, pegou seu telefone celular e ligou para João:

- Bom dia, meu amor. Só queria te pedir um favor. Liga para a vadia da sua irmã e diz para ela que, da próxima vez que ela pedir minhas bolsas emprestadas para passear em Milão, que ela as devolva limpas e sem lixo em seu interior, está bem?  Explica para ela, desenha se ficar difícil dela entender, que, como você é paranóico, isso pode nos trazer sérios problemas conjugais. Eu podia sair daqui agora e ir direto para a casa do Arnaldo. Podia  dar para ele o dia inteiro, meu amor. Mas ele é gay! Entendeu isso, meu amor? GAY!!! E você, Não é corno. Ainda não. Mas é um bom filho da puta. Um feliz final de semana para você, querido. 

 Por:Henrique Biscardi

quarta-feira, 14 de março de 2012

A VIGA DE FERRO

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre elas, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos, enquanto aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre elas, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos, enquanto aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão...

Malú queria trabalhar. Ele, alguém que cuidasse da roupa, da comida e da casa. A moça venceu e batalhou por algum tempo numa tecelagem. Mas o destino lhe deu Bebel. E depois Matheus, Victor, Melissa. Quando a quinta criança nasceu, o lar  já não existia. Malú já não existia, principalmente para Renato.

O rapaz foi paulatinamente substituindo as chaves de boca e o macacão surrado de graxa pelo taco de sinuca. Da cerveja para a cachaça e dessa para o inferno. Os dias passavam, a noite chegava e ele seguia conhecendo um barraco novo a cada dia. Isso até o meio do mês, enquanto um tostão lhe restava. Depois, só bebida e um corpo macio para bater e se encostar. 

Antes de sua mulher, seu chefe se encheu. João recebeu apenas um cheque nominal e lhe pediram as chaves da garagem de volta. No boteco, levou uma surra e beijou o asfalto. Queriam a sua morte, mas seu credor gostou da idéia e aceitou Malú. Arrastado por toda a viela foi jogado à porta de casa e chamou por sua mulher. Nua, de bruços no sofá, Malú não pode compreender aquilo e enquanto seu algoz se vestia. Ela decidiu que nada mais existia.  

No término do primeiro quadrante, do terceiro ano, disseram que a moça enlouqueceu. João sonhou que estava na “hidro” com uma de suas vagabundas. Só teve tempo de arregalar os olhos, antes que seu cérebro derretesse. Ele gritou. Gritou bastante. Encharcado em água e sangue ferventes. Chegou sem vida ao hospital. E Malú apenas sorriu.

Tiraram-lhe os filhos. E ela sorriu. Passaram lhe as algemas, depois as correntes. Ela sorriu. No tribunal, também sorriu. Diante dos polícias, do delegado, do juiz e do júri, apenas sorriu.  quando voltou a ver os filhos, chorou. Abraçados aos rebentos, deu um beijo em cada e despediu-se: “Vocês estão livres”.

Aquelas foram suas últimas palavras, seu último choro, seu último sorriso. Malú morreu. Envolta num velho trapo de pano, ela morreu. Não contava os dias, nem olhava as horas. Comia, bebia, dormia, acordava e apenas a ferrugem daquela viga de ferro na fresta do muro lhe acompanhava.

Os dias de chuva eram bem piores. Presos na cela ou amotinados  no pátio, todos assistiam aquele farrapo humano, descendo até o chão, respirando a terra, procurando, talvez o horizonte ou o mar, sem no entanto, desprender seu olhar da viga de ferro. Resistiu a uma, duas, três doenças, com alguma gravidade, disseram. Contudo seu corpo, que resistira a tanta coisa, não concordava com a idéia de morte e a sorte lhe trouxe Felipe. A compaixão transformou-se em amor e Malú respirou.

O jovem médico conseguiu a remoção da moça para uma clínica particular: terapia, medicamentos e respeito. A moça já não enxergava mais a viga, embora, às vezes, ainda a procurasse. Felipe encontrou os filhos. Um a um. Reuniu a todos em uma grande casa na cidade de Pendotiba, onde meses depois puderam receber de volta a mãe.

Custou cerca de 5 anos para que Malú  pudesse entrar definitivamente na vida de Felipe. Foram necessários  recursos, atenuantes e pareceres médicos até que a condicional lhe fosse ofertada. Pela primeira vez, a moça teve o que sempre sonhou quando se apaixonou por João.

O médico mostrou-se reticente por mais um ano e ao final do verão de 1987, resolveram viajar. Passaram 20 dias longe de tudo e de todos. Felipe voltou convencido de que a mulher estava totalmente recuperada. Numa noite de verão, exausto pelo trabalho, Felipe beijou sua mulher. Em seguida, entrou no chuveiro e tomou um banho. Colocou champagne no gelo e perfumes no pieto, como Malú gostava. O médico era delicado em cada toque. A moça Malú gemia. Seu corpo contorcia-se de prazer. Por um instante, seu olhar apaixonado perdeu-se ao caminhar de encontro ao de seu amante. No canto do teto havia uma viga de ferro, enquanto a chaleira chiava à beira do fogão.


Por; Henrique Bicardi

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A VOLTA DE MALÚ

Um frio cortante lhe impedia de abrir os olhos. As lentes dos óculos, embaçadas pelas lágrimas que pareciam intermitentes, despojaram-se, aliviadas, sobre seus longos cabelos ruivos. Malú tentou respirar fundo, mas o ar rarefeito lhe deu alguma tontura e a menina jogou-se ao longo da montanha.

Fincava a cana no gelo com a intensidade de outras Eras. Sentiu-se pulsar. A idéia de jogar-se, a entrega, aquela sensação de liberdade lhe devolvia o sentido da vida, num momento tão impar, em que qualquer descuido poderia significar a morte. A moça pensou nisso tudo durante a descida, por cada árvore que parecia vir em sua direção. 

Tentou, sem sucesso, esparramar-se na neve por três vezes. Queria, mas não queria. Era uma vontade inexplicável de sentir cada osso de seu corpo se partindo ao tempo em que o medo da morte lhe devolvia o equilíbrio. Quase deu-se por vencida.

Ao longe, avistou um rapaz que descia suavemente a montanha, muito lentamente, quase parando. Triste, solitário, procurando, talvez, por ela – pensou Malú. Precipitou-se ao seu encontro. O choque arremessou o rapaz a alguns metros de distancia.  


Sem tempo a perder, a moça, então, subiu em suas costelas, doloridas pelo tombo. Voraz, arrancou dele, os óculos, a mascara de algodão que protegia seu  rosto e lhe torpedeou com um molhado e demorado beijo. A moça lhe prendia os braços e sem poder respirar, o rapaz encontrava-se quase desfalecido.  Algumas pessoas, porém, presenciaram o acidente e vieram salvar o rapaz. A muito custo, puxaram Malú para um outro ponto da montanha, enquanto alguns paramédicos prestavam os primeiros socorros ao moço. 

Houve tempo para que Malú recuperasse o fôlego. A menina aguardou colocarem o rapaz na maca e com os lábios sedentos voltou a atacá-lo. Contida novamente, só então percebeu, ao distanciar-se: Aquele não era João.

 Malú pensou na ironia de toda aquela maciez branca que lhe envolvia o corpo e no céu azul que, a sua frente, lhe fazia sentir as vistas. Foi levada ao seu quarto e por lá permaneceu o resto do dia, entre um gole de vinho e várias lembranças. Na manhã seguinte pegou o primeiro vôo com destino a São Paulo.

Encontrou a cidade barulhenta e nublada, como de sempre. Uma chuva fina lhe trouxe um leve sorriso. O porteiro não lhe estranhou e ofereceu-se para carregar sua mala até o apartamento 803. O moça entrou, despiu-se e afundou no colchão macio.

Por volta das 19 horas, João entrou em seu apartamento e sorriu. Foi até o banheiro e barbeou-se. Tomou um longo banho. Enxugou-se, caminhou até sua cama e encaixou seu corpo no de Malú. A moça sentiu sua presença e virou a cabeça com um olhar interrogativo. O rapaz colocou as mãos em seus cabelos e os acariciou. Malú ajeitou mais ainda o seu corpo no de João. A moça estava cansada e desfaleceu, amparada pelas mãos mágicas de João que já naquele momento lhe acariciava os seios.

No dia seguinte João deu uma última olhada para o seu apartamento. Sabia que, com Malú de volta, a noite, ao retornar do trabalho, tudo estaria diferente...como sempre esteve.

Por ; Henrique Biscardi