segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

ALUCINANTE INÊS.

A temperatura esquentou em Dolan Springs após a chegada de Inês. Mãe cubana, pai brasileiro. Morou em Miami e herdou algumas terras numa comunidade indígena próxima. Mulher alta, de pele morena. Seios firmes e fartos. Boca carnuda, olhar malicioso. A mudança descarregava quando João a viu pela primeira vez, naquela manhã.

Duas semanas se passaram e o calor estava dos infernos. Buzinas tocando, um cano propositalmente estourado. Umidade abaixo do tolerável, estado de alerta ligado. O carro não agüentou. Esquentou, ferveu. João Abandonou a sarjeta e caminhou até sua casa. O paletó ficou pelo caminho, junto com a gravata. O asfalto em brasa, o sol do tamanho da terra. Camisa branca, molhada, virou trapo. Parecia miragem e ele só acreditou ter chegado em casa quando se apoiou na maçaneta e esta o sustentou.  

Entrou. Morou na geladeira por alguns segundos, pouco antes de afogar-se numa jarra de água bem gelada. Sapatos pularam e meias derreteram. Subiu as escadas, moribundo. As tábuas rangeram, dissonantes de gemidos e sussurros que se aproximaram, galopantes. Desfaleceu-se encostado às grades, enquanto pela fresta observava Isaura exalando tesão ao ser possuída por Inês na cama de João.  

Corpo moído, desidratado, jogado ao colchão. Rostos preocupados, agulhas em seu braço. Suas forças, aos poucos, retornavam. Tremores nas mãos, voz embargada. Teve medo de perguntar e calou-se.  Isaura deitou-se ao seu lado e lhe deu o colo.

Uma semana se foi e a certeza do fim passou, no meio oeste. Rotina trazida ao normal. O homem saiu para trabalhar e só o transito permanecia no caos. Mas aquilo também estava dentro da normalidade. Só uma imagem, nebulosa e desconexa, perturbava João. E, a cada novo dia, ele se perguntava: onde começa a loucura e onde a sanidade, termina?

O rapaz queria respostas e aceitou de bom grado as obras pretendidas, a longo prazo, por sua esposa. Trocou janelas, arejou a casa, nada encontrou. Instalou câmeras, mudou horários e Isaura mantinha sua paz, sua tranqüilidade.

João, por sua vez, estava enlouquecido. Roberto o desaconselhou a convidar Inês para acompanhar sua esposa durante uma ausência sua, mas ele estava irredutível. Temendo pela sanidade mental do amigo, pediu à Milena, sua esposa, que trocasse de lugar com Inês, acompanhando Isaura em sua ausência. João ficou desapontado com a “traição” do amigo.  

Fantasia, fetiche – disse-lhe o médico. João não aceitou e procurou outras “especialidades”:

– Eu vejo um homem, negro, forte – arriscou a cartomante.
– Não. Era uma mulher. Disso, eu tenho certeza.
– Podia ser um homem vestido de mulher – insistiu.

Ele não queria mais saber daquelas alucinações e decidiu ouvir seu psiquiatra. Agendou outra viagem e, desta vez, levou Isaura. Sol, calor e água para refrescar. Depois do café, subiram a montanha. Fotos de paisagens, pássaros e amigos. Um rafting e um mergulho na cachoeira para abrir o apetite. Churrasco e descanso na rede embalados ao som de Sting. Ao final do dia, uma caminhada pela trilha que levava ao Canyon.  

João mostrava-se aliviado. Sorria de sua própria insanidade e questionava o quanto "trouxa" havia sido por pensar "aquilo" de sua amada Isaura. Sua mulher  permaneceu ao seu lado durante todo a caminhada e contentou-se com a felicidade de seu marido ,  enquanto Inês despia Milena no Trailler de João.  
Por: Henrique Biscardi

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

JOÃO, VALQUÍRIA E MARINA

Nas escadas da universidade, a menina mexia no seu celular rosa. Cabelos loiros, pele bem clara e olhos redondos e grandes. Trajava uma blusa branca e  uma saia jeans que fazia par com sua jaqueta. Olhar atento, muito atento. Ninguém estranhou quando o carro explodiu e ela nem se mexeu.  

Só o vento lhe acompanhava em sua dor. O mar se acalmou. Os peixes pareciam lhe ignorar e nadavam.  Como notar suas lágrimas pouco salgadas naquela imensidão? Escureceu. As pessoas foram embora e João encontrou a paz. Passou horas ali conversando com estrelas, certo de que elas lhe ouviam. Depois, remou até onde o sol se punha. Prancha no teto e coragem no coração. O caminho era mais curto do que desejava e Valquíria lhe esperava, sem ser notada.

Ele não queria discussão, ela desejava ficar. O impasse durou entre o portão da garagem e o interior da casa. Deixou-a na sala, sozinha, com suas razões infundadas. Quando a calmaria voltou, saiu. Jarra na cabeça, faca no peito – O que é isto, está louca?

Estava. A traição era dela, acusava ele. Ele carregaria a culpa, dizia ela. Arranhou-lhe o peito. Sangrou. Não o suficiente para impedir que o rapaz lhe torcesse o braço e lhe  arrancasse a faca. Empurrou-a na cama e depois saiu. Voltou horas depois com a polícia em seu encalço. Vestido rasgado, hematomas nos braços, nas pernas, ferida nos lábios. O sêmen em suas pernas era dele.

O julgamento foi surpreendentemente rápido e a condenação inevitável. Ironicamente, João ficou preso numa ilha, de onde saiu cinco anos mais tarde. Não tinha mais casa e sua família há muito já havia partido. Pela cidade, sentia o ódio e a desconfiança seguindo-o como sombra de seu próprio corpo. Colocou o pé na estrada sem querer saber o destino de Valquíria.

Chegou na cidade grande a procura de um primo distante. Foi bem recebido, descolou um “trampo” e, algum tempo depois, uma passagem para a Austrália. Fez amizade com um grupo “local” e logo passou a dar aulas de surf. Concluiu um curso de fotógrafo profissional e passou a fazer trabalhos para uma grande revista de esportes. Viajou o mundo inteiro e parecia deixar o seu passado, a cada dia, mais distante.   

Na Indonésia foi ajudar um pedinte e encontrou Argeu. O rapaz queria vingança. João só queria trabalhar e descansar. Porém, na falta de um futuro, o mendigo não lhe abandonou. Todos os dias, na porta do hotel, a mesma tentação.  O fotógrafo pediu ajuda aos céus e tentou refúgio no mar. Queria resistir. Há tempos não ‘pegava” onda.  Perdeu-se na correnteza e em suas lembranças. Acabou voltando.

Disse que precisava de umas férias. Depois de pedir, porém, relutou em aceitá-la. Era tarde. A idéia já lhe corrompera a mente. Talvez a Austrália fosse distante o suficiente, mas a Indonésia, não. Argeu também lhe era próximo. Amigo de infância, dizia que também havia sido traído. Negócio de contrabando, na Malásia. Valquíria ficou com o dinheiro e com os quadros, enquanto ele, por muito pouco, não acabou na forca.

Valquíria nunca saiu do país e achá-la não foi tarefa difícil. Subiu na vida a custo de muito trabalho e passou a freqüentar as colunas sociais. João estranhou aquelas informações e procurou por ela. Um encontro casual selou o destino. A moça o encarou de longe e fez cara de nojo. João, revoltado, decidiu-se pelo castigo.

Smoking e convite à mão, subiram ao barco. Argeu encontrou uma moça com belos seios. João ansiava por Valquíria. A madrugada varou e a bela não apareceu. A orquestra silenciou, os convidados se foram e o fotógrafo voltou para o seu quarto de hotel, enquanto seu companheiro se perdia pela noite.

Acordou preso à cama. Um vestido longo, branco, com uma grande fenda lateral lhe chamou a atenção. Só estavam os dois no quarto e ela parecia desarmada. Apertou seus lábios e o beijou. Passou a mão em seu rosto e lhe sorriu. No tempo de João fechar e abrir os olhos, Argeu apareceu.

O fotógrafo reconheceu Rebeca, não entendeu o motivo das amarras e quis desconfiar. Argeu desconversou e a irmã dele disse que pretendia ser de João. O irmão deixou os dois a sós no quarto. No entanto, enquanto a moça se banhava, o rapaz ficou esperto. Antes que dessem por sua falta, desceu pelas escadas de incêndio.

Entrou no apartamento de Valquíria pela porta dos fundos, num descuido da empregada. Aproximou-se da banheira e causou espanto na moça. Da gaveta da sala, a arma estava agora em suas mãos. O dedo no gatilho não estava trêmulo ou vacilante e Valquíria,  pela primeira vez na vida, sentiu medo.

João já não lhe queria mal e quando Marina emergiu na água espumante, seu sorriso doce o fez lembrar a Valquíria de um outro tempo. A menina não tinha dez anos, reparou seu pai antes de tombar para trás com dois tiros no peito. Argeu também sangrou, sem nunca ter se deitado com Alice e acreditando que Rebeca fosse mesmo sua irmã.

Foram anos difíceis para aquela menina. A mãe optou por nada lhe esconder e ela chorou ao saber da morte do pai, a quem acabara de conhecer. Alice fez de tudo para que Marina voltasse a sorrir. A menina até voltou! Porém, feliz mesmo, só conseguiu ficar após ver Rebeca fritar, no interior de seu carro, no estacionamento de uma Universidade qualquer, em Brasília. 



Por: Henrique Biscardi

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O CAJADO

Desceu ladeira abaixo, quicando de paralelepípedo em paralelepípedo. A cabeça foi bem próxima do chão, várias vezes. A palma da mão ficou ralada e o coração quase lhe fugiu pela boca. Dobrou a esquina, varado! Ficaram pelo caminho, um pedaço de jeans velho e algumas partes de peles e pêlos de seus joelhos. Entrou como uma flecha por um casebre insalubre, poucos instantes antes de queimar-se junto com o resto de suas coisas e amaldiçoar a todos daquela cidade. Muitos juram que seu corpo jamais foi encontrado.  Nenhum vestígio, nada. Outros garantem ter visto uma sombra esvaindo-se pelo milharal. A maioria prefere não mexer no cajado escuro, escorado ao relento.

João do Nascimento era o seu nome de batismo, mas Joca deve ter mexido a cabeça na hora derradeira, pois abençoado como devia ter sido não se meteria em tanta confusão. Aos doze anos, foi descoberto roubando a sacristia e no castigo foi pego comendo um coleguinha no confessionário. Seus pais agradeceram ao juiz quando este o enviou ao reformatório e aproveitaram a ocasião para mudarem seus destinos e se colocaram na estrada.

Organizou uma greve, colocou fogo em colchões e teve o corpo perfurado por uma faca. Ficou 15 dias entre a vida e a morte e quando voltou, parecia ter feito às pazes com o criador. Ficou agradecido aos que lhe salvaram a vida e passou a fazer uma série de serviços na casa de saúde onde se recuperava. Tanto fez pelos padres, donos do lugar, que estes lhe conseguiram um perdão e Joca voltou a ser João.

Meses depois, conheceu e apaixonou-se por Alice.  Estava concluindo o supletivo e, em sua formatura, fez agradecimento especial à sua professora. Não tardou, começaram um romance. Mas a menina entrou para a faculdade e partiu em direção à cidade grande. Muitos temeram a volta de Joca, mas o rapaz manteve-se firme.

Uma grande mudança ocorreu em Canavieiras nos anos seguintes. A agroindustria chegou e João animou-se. Fez um curso técnico e logo chegou a gerente de produção. Comprou uma casa e tornou-se “homem feito”. Ganhou o respeito e a confiança dos vizinhos. Casou-se com Maria Rita e a vida seguia um curso inimaginável por ele e por seus pais.

Perto de Manú nascer, Alice reapareceu em sua vida. Seu pai era homem poderoso na cidade e transformou a escola técnica em Universidade, e sua filha em Reitora. O primeiro encontro entre os dois foi amistoso. Alice estava noiva de Pedro Paulo e João carregava sua filha em seus braços. Com o tempo, porém, os hormônios foram se inquietando e o desejo reacendeu no peito dos desajustados. Encontravam-se pela madrugada, caídos de amor. Alice ameaçou largar de Pedro, mas João tinha Manú. Combinaram de fugir os três, rio abaixo e Maria Rita não se conformou.

A caçada durou meses. A mulher e o sogro no encalço de João. Mas ele e sua nova família evaporaram na trilhas da caatinga e quando o mar chegou e a cidade cresceu, não houve jeito de encontrá-los. Atravessaram o atlântico e ganharam o mundo.

Mas João há muito não era mais Joca e acreditou, quando soube por Ismael, que Sr. Egberto, nas últimas, carecia do perdão da filha. Soube também que Maria Rita havia se amancebado com outro e ambos haviam deixado a cidade para trás para melhor viver na capital.

Fez, então, o caminho de volta. Alice, na verdade, nunca se acostumou ao clima da Europa e além de Manú, existiam também Roberto e Ricardo, netos legítimos do moribundo. Na primavera de 1983, eles voltaram ao sertão.

A cidade estava transformada. Pouca poeira sobrara e no solo, germinava arvores e jardins. A seca havia sido superada e a industria trouxe progresso. As ruas de paralelepípedo existiam mais em função do turismo do que pela falta de verbas para seu asfaltamento. João e Alice foram recebidos como esperavam: 

– Vamos deixar o passado para trás. Não há felicidade maior para um homem perto da morte do que ter sua família ao seu lado. 

Mas Maria Rita não estava perto de morrer e pensava diferente. Deu notícia no jornal da cidade sobre a morte do “Coronel” e na foto, ela reconheceu João. Decidiu reaver Manú e arquitetou por meses a sua vingança. E foi assim que num domingo qualquer de maio, a moça surgiu ao largo do campo do meio, de frente para o castelo. Não estava sozinha. Cerca de quinze jagunços, armados até os dentes, entraram fulminantes pela porta principal, derrubando tudo o que viam pela frente e matando a todos pelo caminho.

Alice jogou os filhos numa charrete que também se queimou antes de chegar ao portão lateral do cerco. Depois, atirou-se no mar, em vão, enquanto o castelo ruía em cinzas. Joca reencarnou-se em João e muitos contam que matou para mais de dez antes de ser visto dando cambalhotas pela ladeira das macieiras.

Maria Rita só reencontrou Manú, anos depois, na ponta de um punhal, que lhe atravessou o coração e lhe embaçou as vistas. Alfredo, seu marido, duelou com Ricardo até seus olhos perderem o viço. Após o massacre, um vendaval devastou a cidade. Raios desceram dos céus. Postes tombaram, animais voaram, casas caíram. Não sobrou tijolo sobre tijolo na cidade. 

Em seis meses, o mato cresceu e a fábrica faliu. Nada mais germinou, nem a cidade voltou a ser construída. Visto de longe, do alto do morro, só um velho casebre resiste. De perto, não existe nada além de um velho cajado, de pé, apoiado apenas na linha do horizonte. 
 Por: Henrique Biscardi