terça-feira, 18 de janeiro de 2011

JOÃO, VALQUÍRIA E MARINA

Nas escadas da universidade, a menina mexia no seu celular rosa. Cabelos loiros, pele bem clara e olhos redondos e grandes. Trajava uma blusa branca e  uma saia jeans que fazia par com sua jaqueta. Olhar atento, muito atento. Ninguém estranhou quando o carro explodiu e ela nem se mexeu.  

Só o vento lhe acompanhava em sua dor. O mar se acalmou. Os peixes pareciam lhe ignorar e nadavam.  Como notar suas lágrimas pouco salgadas naquela imensidão? Escureceu. As pessoas foram embora e João encontrou a paz. Passou horas ali conversando com estrelas, certo de que elas lhe ouviam. Depois, remou até onde o sol se punha. Prancha no teto e coragem no coração. O caminho era mais curto do que desejava e Valquíria lhe esperava, sem ser notada.

Ele não queria discussão, ela desejava ficar. O impasse durou entre o portão da garagem e o interior da casa. Deixou-a na sala, sozinha, com suas razões infundadas. Quando a calmaria voltou, saiu. Jarra na cabeça, faca no peito – O que é isto, está louca?

Estava. A traição era dela, acusava ele. Ele carregaria a culpa, dizia ela. Arranhou-lhe o peito. Sangrou. Não o suficiente para impedir que o rapaz lhe torcesse o braço e lhe  arrancasse a faca. Empurrou-a na cama e depois saiu. Voltou horas depois com a polícia em seu encalço. Vestido rasgado, hematomas nos braços, nas pernas, ferida nos lábios. O sêmen em suas pernas era dele.

O julgamento foi surpreendentemente rápido e a condenação inevitável. Ironicamente, João ficou preso numa ilha, de onde saiu cinco anos mais tarde. Não tinha mais casa e sua família há muito já havia partido. Pela cidade, sentia o ódio e a desconfiança seguindo-o como sombra de seu próprio corpo. Colocou o pé na estrada sem querer saber o destino de Valquíria.

Chegou na cidade grande a procura de um primo distante. Foi bem recebido, descolou um “trampo” e, algum tempo depois, uma passagem para a Austrália. Fez amizade com um grupo “local” e logo passou a dar aulas de surf. Concluiu um curso de fotógrafo profissional e passou a fazer trabalhos para uma grande revista de esportes. Viajou o mundo inteiro e parecia deixar o seu passado, a cada dia, mais distante.   

Na Indonésia foi ajudar um pedinte e encontrou Argeu. O rapaz queria vingança. João só queria trabalhar e descansar. Porém, na falta de um futuro, o mendigo não lhe abandonou. Todos os dias, na porta do hotel, a mesma tentação.  O fotógrafo pediu ajuda aos céus e tentou refúgio no mar. Queria resistir. Há tempos não ‘pegava” onda.  Perdeu-se na correnteza e em suas lembranças. Acabou voltando.

Disse que precisava de umas férias. Depois de pedir, porém, relutou em aceitá-la. Era tarde. A idéia já lhe corrompera a mente. Talvez a Austrália fosse distante o suficiente, mas a Indonésia, não. Argeu também lhe era próximo. Amigo de infância, dizia que também havia sido traído. Negócio de contrabando, na Malásia. Valquíria ficou com o dinheiro e com os quadros, enquanto ele, por muito pouco, não acabou na forca.

Valquíria nunca saiu do país e achá-la não foi tarefa difícil. Subiu na vida a custo de muito trabalho e passou a freqüentar as colunas sociais. João estranhou aquelas informações e procurou por ela. Um encontro casual selou o destino. A moça o encarou de longe e fez cara de nojo. João, revoltado, decidiu-se pelo castigo.

Smoking e convite à mão, subiram ao barco. Argeu encontrou uma moça com belos seios. João ansiava por Valquíria. A madrugada varou e a bela não apareceu. A orquestra silenciou, os convidados se foram e o fotógrafo voltou para o seu quarto de hotel, enquanto seu companheiro se perdia pela noite.

Acordou preso à cama. Um vestido longo, branco, com uma grande fenda lateral lhe chamou a atenção. Só estavam os dois no quarto e ela parecia desarmada. Apertou seus lábios e o beijou. Passou a mão em seu rosto e lhe sorriu. No tempo de João fechar e abrir os olhos, Argeu apareceu.

O fotógrafo reconheceu Rebeca, não entendeu o motivo das amarras e quis desconfiar. Argeu desconversou e a irmã dele disse que pretendia ser de João. O irmão deixou os dois a sós no quarto. No entanto, enquanto a moça se banhava, o rapaz ficou esperto. Antes que dessem por sua falta, desceu pelas escadas de incêndio.

Entrou no apartamento de Valquíria pela porta dos fundos, num descuido da empregada. Aproximou-se da banheira e causou espanto na moça. Da gaveta da sala, a arma estava agora em suas mãos. O dedo no gatilho não estava trêmulo ou vacilante e Valquíria,  pela primeira vez na vida, sentiu medo.

João já não lhe queria mal e quando Marina emergiu na água espumante, seu sorriso doce o fez lembrar a Valquíria de um outro tempo. A menina não tinha dez anos, reparou seu pai antes de tombar para trás com dois tiros no peito. Argeu também sangrou, sem nunca ter se deitado com Alice e acreditando que Rebeca fosse mesmo sua irmã.

Foram anos difíceis para aquela menina. A mãe optou por nada lhe esconder e ela chorou ao saber da morte do pai, a quem acabara de conhecer. Alice fez de tudo para que Marina voltasse a sorrir. A menina até voltou! Porém, feliz mesmo, só conseguiu ficar após ver Rebeca fritar, no interior de seu carro, no estacionamento de uma Universidade qualquer, em Brasília. 



Por: Henrique Biscardi

2 comentários:

  1. Não se lê um conto do Sr Biscardi sem suspense e uma surpresa em seu desfecho. Muito bom.
    Está ficando especialista em thriller. Beijos

    ResponderExcluir