quarta-feira, 15 de junho de 2011

MALÚ E OS CADEADOS DO AMOR

Achou mesmo que podia passar, aquela noite, a revelia da dor que consumia a sua alma. O jantar esfriava, repousado a mesa. Submersa em finos lençóis que protegiam o seu corpo nu dos brutos acolchoados que lhe detinham à cama, fixou seu olhar na rosa vermelha e solitária, que postada ao lado do prato, alimentava lembranças.  

As horas badalavam em sinos gigantes, aumentando a sua angústia. O dia se foi. As cortinas não foram abertas, nem as luzes, acesas. Permanecia imóvel. Não fossem as lágrimas, que percorriam os suaves contornos de seu rosto macio e repousavam-se, salgadas, em seus doces lábios carnudos, diriam que estava morta. Não estava.

Após um breve suspiro, Malú adormeceu. O jantar e a rosa sentiram-se mais abandonados.  Porém, enquando o café da manhã já lhes faziam companhia, a menina anda sucumbia à tristeza. Queria sentir João. Seu cheiro, ainda impregnado em recantos obscuros de sua boca, lhe deram coragem. A moça saiu a sua procura.

Naquele dia ensolarado, pessoas desfilavam seus T-shirts e brigavam por espaço entre os gramados cercados de Paris. Malú focava os amantes. Entrelaçados, deitados ou sentados de frente. Alguns pareciam estar na eminência de lhe oferecer ajuda. Apenas uma sensação. Sua procura era desconhecida daqueles olhares encantados. Eram seres apaixonados, curtindo uma linda manhã ensolarada de primavera, nos gramados de Paris.

A menina insistiu. Havia meses, não ligava para seu marido. Entrou e saiu da cabine algumas vezes. Discou, porém ao completar a ligação, desligou. Temia que do outro lado da linha a voz não fosse a de João – E se a solidão e o abandono fossem maior do que o seu caráter? E se encontrasse uma voz feminina, suave e feliz, a dizer-lhe “bom dia”? – Malú enfureceu-se como nos velhos tempos.

O fone ficou ali, pendurado. A menina abriu os braços e respirou o ar. Fitou o céu azul e se pôs a caminhar. Olhos azuis e pele rosada chamavam a atenção. Seu olhar libidinoso causava estranhamento em alguns que cruzavam o seu caminho. A maioria lhe sorria. Sentiam-se orgulhosos, crentes que eram únicos e belos. A sedução sempre foi sua fiel companheira.

Rumando ao norte, deparou-se com aquela ponte. Casais se bolinavam, ao longe, nos jardins. Outros,  esfregavam-se ali mesmo, no parapeito. Malú imaginou-se tocada. Fechou os olhos e sentiu as mãos de João. Mordeu os lábios,  cresceu os seios, ficou molhada. Só então, percebeu que não estava só. A maioria achou graça, mas compreendeu.  Afinal, era dia dos namorados em Paris! Apenas Malú sentiu-se envergonhada. Menos pelo delírio, muito pelo que fizera a João.      

Recostou-se na grade que percorria a Ponte das Artes. Estranhou aquele monte de cadeados afixados no local. Procurou e não encontrou número de bicicletas ou ciclistas que podiam lhes fazer sentido. Aproximou-se e soube por um senhor que não eram apenas cadeados – É o amor, menina. O amor eternizado. O elo, o religare. Não com um ser supremo. Mas com o seu coração – disse-lhe com leveza e sabedoria.

Malú emocionou-se e quis saber mais sobre a tal grade. Um casal, ela ainda com o seu vestido de noiva, lhe falou sobre os “cadeados do amor”. – São símbolos da união eterna.  As almas se encontram, se amam e se comprometem. O símbolo da união fica aqui, exposto no gradeado. As chaves, são arremessadas no Rio Sena, que torna-se assim, o guardião, para todo o sempre, de nossos segredos, de nossos tesouros, de nosso amor. 

O casal arremessou suas chaves sob o olhar inquietante de Malú. A tarde caminhava, ligeira. Já era quase noite. A menina havia  tocado em cada um dos cadeados. Nomes gravados, mensagens contidas, amores do passado, presentes e esperançosos de um futuro. Um, em especial, lhe chamou a atenção. Seu coração acelerou.  Suas vistas embaçaram. A voz, muda, desapareceu. 

Reconheceu naquele artefato prateado a data de sua união. Viu também seu nome e o de João. Tonteou e segurou-se à grade. Sua cabeça girou por parques, gramados e vielas. Retornou ao parque. Caminhou, de uma ponta a outra da ponte. Passos acelerados, mãos suadas. Malú queria João ali, naquele momento. Queria vê-lo, tocá-lo, amá-lo. 


Tentou arrancar da grade, o cadeado. Desejava para si, aquele amor. Desejava abri-lo. Precisava entendê-lo. Talvez, conseguisse compreender a sua dor, a sua angústia. Pensou se seria possível reaver João. Contida por guardas, a moça se desesperou. A grade resistiu. Malú resistiu também. Diante de si, o mar, o rio, o Sena. Nele, as chaves.

À noite, diante da porta da Unidade Intensiva do Hospital Central de Paris, apenas a certeza:
–  Não houve como conter a moça.


Por: Henrique Biscardi.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A PROCURA DE MALÚ

Ninguém soube bem ao certo se foi exigência de João. Entre terapia e separação –  dizem! – ela optou por decoração.  O curso foi intensivo, seis meses. Obteve algum sucesso imediato com as amigas da academia. Porém – também não se conhece a razão –  começou a ter dificuldades em conseguir empregados. A empresa naufragou em dívidas.

Argumentou novamente que tinha vergonha e que um bom terapeuta era muito caro. O marido a convenceu mostrando-lhe a quitação de suas dívidas, que nada tinham de decorativas.  Malú insistiu que não desejava expor sua vida a “qualquer um” e sugeriu entrevistar alguns terapeutas para se decidir. João lembrou-se da Lei Maria da Penha e preferiu deixar a água fria do chuveiro escorrer por suas têmporas.

Viu Marcos Pedrosa num programa de TV e o achou inteligente. Só descobriu que se tratava de terapia para animais quando tentou agendar uma consulta e a secretária lhe perguntou qual era a raça do paciente. A vida parecia-lhe muito difícil e achou melhor então, ir a um shopping. Faz compras, foi ao cabeleireiro e comeu alguns chocolates. Chegou em casa cantarolando e parecia pronta para novos desafios.

Uma estola branca de pele sintética, dispensada às costas do sofá da sala de estar, mudou o seu humor. Pela fresta da porta não pode ouvir o que conversavam. Sapatos de médios saltos, pernas longas e bem torneadas...Enfureceu-se. Imaginou que a lareira não fosse capaz de secar a blusa branca em cetim, nem mesmo a saia estampada em fios de lã que cobria as pernas daquela vagabunda até a altura do joelho. Pegou mesmo um pedaço de jornal e ateou fogo. O sistema de alarme contra incêndio acionado, casa inundada. Andréa achou estranho e há muito custo concordou com a entrevista. O que a fez desistir de tratar a esposa de João foi mesmo aquele incêndio.    

João preocupou-se com Malu que surgia chorando, inocente, no meio do jardim. Ela só não contava com as câmeras de segurança da casa. O rapaz teve que convencer os policiais a abafar o caso e registrá-lo como acidente. Desesperada, ela implorou para que ele ficasse. Porém, suas roupas já estavam no porta-malas de seu Corola prata, reformado, e João se foi.

No escritório, o rapaz respirava com dificuldades. Olhos inchados por lágrimas e noites sem dormir. A cinco quadras dali, Malú descia do ônibus já com alguma desenvoltura. Subia até o 10º andar do edifício Regência, onde Dr. Alcântara lhe recebia com seu velho cachimbo. Sim. Malú foi ao fundo do poço, mas não perdeu certos valores. Para ela, terapeuta bom, fuma cachimbo.

Interromperam a consulta 20 minutos mais cedo. Pneumonia, disseram ao telefone. Malú ficou desnorteada e desceu as escadas dos dez andares do prédio, de salto. Entrou no primeiro táxi e seguiu ao hospital. Esperou por três noites, até que João resistiu e saiu da unidade intensiva. Duas semanas depois, já estava em casa.  Malú não se sentia preparada para voltar. Cuidava dele, todos os dias. As noites, a moça passava na casa de sua mãe. Na terceira semana, sentiu seu homem mais forte, não resistiu e cedeu.

João estava feliz e Malú dizia, no consultório, que o casamento ainda a apavorava. Falou da moeda que passou ao marido no dia do “pedido”, da solidão e do vazio que sentia. Pensou em passar uns tempos em Londres e foi desaconselhada por seu terapeuta – a fuga não é o melhor caminho, meu anjo – disse o doutor.

O tempo passou e a moça começou a assustar seu marido de outra forma. Acordava cedo. Aproveitava as manhã com longas caminhadas. Depois, banho e terapia.  Nas tardes, aulas de Inglês e Francês. Quando a noite chegava, havia o jantar que Malú aprendeu a preparar. 

Isso não era bom, pressentia João. O rapaz testou.  Ofereceu-lhe sua infalível massagem nos pés, banhada a água morna. Percebeu que sua esposa cedeu ao mimo apenas por delicadeza. Mal pode terminar.  Malú recolheu o pé quando a toalha seca lhe tocou e João já encontrou a luz apaga quando do banheiro, saiu.

Madrugada a dentro, olhar fixo num ponto qualquer da parede, buscavam horizontes distintos. Seus corpos sentiam a falta, um do calor do outro. Havia o desejo na pele, porém uma dor imensa, no coração.

Numa sexta feira do mês de outubro, Malú encarou Dr. Alcântara de frente – Estou  indo para Paris – dizia. O médico se emocionou:

– Vá, pois já não é fuga, é descoberta.

João também não lhe segurou. No aeroporto, beijaram-se com paixão, como há muito tempo não faziam.

- Até breve, meu amor – disse ela.

- Até breve. 


Por: HENRIQUE BISCARDI