sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O ALFAIATE DE PIEDADE

Sentado à mesa, molha o pão dormido no café e lê o jornal, sem pressa. Procura algum sentido nas notícias e sorri da própria sorte. Coloca o papel de lado. No bolso de trás um pente fino da marca Flamengo. Nenhuma identidade. Sr. Nino é torcedor do América.

Mas, sua grande paixão são os cavalos. A bem da verdade, seu único prazer nos últimos seis anos, depois que dona Ieda lhe deixou sem ter tido vontade. Passava os dias ali, sentando diante de uma mesa de quatro lugares, pés de ferro e sem pintura. Seguro em suas mãos, um velho aparelho que funciona à pilha e pega até  “as rádios do estrangeiro”.

Todos os dias, a mesma rotina. Após o café, coloca uma camisa listada de botões e tecido. Por baixo, uma camiseta branca, limpa. Veste também, e com orgulho, as calças de tergal, feitas pelo prórpio, há mais de 30 anos.   Caminha até a casa de apostas e faz a sua “fé”. No caminho de volta, uma pausa na venda do Sr. Armínio. Compra algumas balas para Isabela, a menina do prédio em frente, que saí para a escola às onze horas, não sem antes, brincar de esconde com o velho solitário.

Sr. Nino foi o alfaiate mais requisitado de Piedade em meados dos anos 30. Vinha gente até dos “engenhos” fazer terno com ele. Orgulhava-se também, de ser conhecido por toda a vizinhança e de ter conquistado um número de amigos de forma que nem conseguia lembrar-se de todos. Nunca, porém, perdeu a humildade e nem quis saber de acumular riqueza ou sair do bairro.

Seus filhos, não. Cada um, dos três, tomou um rumo diferente na vida. Carolina  foi para os Estados Unidos. Carlinhos aventurou-se pelo Marrocos e Claudionor ficou mais perto, em Brasília. Aqui no Rio, foi morrendo um a um dos irmãos, vizinhos e amigos. Restou seu Nino, seu rádio e as corridas de cavalos.

 Mas a solidão nunca foi sua companheira, exceto ao final do Ano. Isabela não ia para a escola e Sr. Armínio partia para Portugal em busca de parentes ainda vivos. O mais cruel, porém, era falta de corridas. As lojas de apostas até permaneciam abertas, mas apenas para loterias. Conseguia assim, um sorriso ou outro de uma atendente mais antiga e um “Feliz Natal” do jornaleiro. No mais, a tristeza finalmente, o vencia.

Nessa época era difícil mesmo, levantar-se e cozinhar. Adoeceu uns três Natais seguidos, de forma que naquele ano, resolveu contratar uma firma que lhe forneceria quentinhas. No dia 24, não fazia Ceia. Comprava alguns bolinhos de bacalhau e garrafas de vinho chileno.  Embora não fosse muito religioso, a Missa do Galo lhe fazia alguma companhia, já que o bom velhinho não aparecia. E o Natal passava assim, só e devagar. 

Isabela apareceu, vindo do nada, bateu-lhe a porta e o chamou para brincar. Seus pais, passaram do sexto andar à cobertura, e imaginaram – pensou Sr. Nino – poder ver os fogos de Copacabana lá de cima. Mas o velho alfaiate ainda não estava decidido a aceitar o convite.

O Reveillon logo chegou. Enquanto Sr. Nino permanecia indeciso, Isabela o conduzia, com suas mãos pequenas, pela imensa sala de seu novo lar. Atravessaram todo o apartamento e o alojaram numa confortável cadeira à beira da Piscina, onde foi apresentado a todos os convidados. Logo, Sr. Walter lhe cercou com alguns amigos e se perderam no tempo, falando sobre a vida, o bairro de Piedade e suas transformações. Quando os primeiros fogos foram ouvidos, caminharam até a sala e um espumante foi aberto. Dona Virna pediu um minuto de atenção. Agradeceu a presença de todos e anuncio a passagem de um vídeo comemorativo da nova casa.

Sr.Nino colocou os óculos para enxergar melhor, mas logo seus olhos ficaram embaçados. Um a um, seus filhos, noras e netos, surgiram a sua frente, ultrapassando as 42 polegadas daquele modesto televisor, invadindo a sua memória e espalhando-se por todo o ambiente. Foi a primeira vez que o velho alfaiate ouviu a palavra “vovô” e ele quase não agüentou de tanta emoção.  Achou todos muito gordos e nem reconheceu Claudionor, de infância tão franzina, e agora tão obeso.

Todos ficaram muito emocionados. Sentiram, verdadeiramente,  uma vontade imensurável de fazer parte daquilo, daquela família. Estavam, ao mesmo tempo,  agradecidos por terem estado este tempo todo reunidos, por terem  deixado de lado viagens, passeios e outros programas mais atraentes, para estarem ali, reunidos, numa data tão importante e num momento muito especial para as vida de DonaVirna, Sr. Walter e da pequena Isabela. 

Sr. Nino não tinha palavras. Preferiu voltar ao seu canto e experimentar, sozinho, aquelas doces imagens. Dizem que ele assistiu àquele DVD a noite inteira. Só lá pelas cinco da manhã, sem importar-se com a forte dor que sentia no peito, sentou-se na cadeira de balanço para descansar. Quando os primeiros raios do novo ano surgiram, o alfaiate sorriu como não fazia há pelo menos seis anos. Depois, segurou firme a mão de Dona Ieda e colocou-se à caminho da luz.    

O barulho da chaleira o despertou. Ainda sem poder se situar no tempo e no espaço, levantou-se e caminhou até a sala de estar. No local, não encontrou aparelhos de DVD nem cadeiras de balanço. Olhou para sua velha Telefunken, de imagens em preto e branco, com o tubo de imagem fudido, e se benzeu. Jogou de lado o medo de avião, o orgulho, a acomodação e a teimosia. Pegou a passagem mandada por sua filha e rumou aos Estados Unidos. No Free shop, comprou um discman,  um cd do Cazuza e descobriu que a solidão é mesmo pretensão de quem fica, escondido, fazendo fita.


Por: Henrique Biscardi

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O SEGREDO DE PEDRO

Acordou sem pressa e com pouca disposição para mover-se. As mãos caminharam, sozinhas, até o controle remoto da televisão, mas nada de interessante passava. Ouviu os primeiros barulhos que vinham do andar térreo.  Nenhuma mensagem direcionado a ele. Mesmo assim, reuniu todas as forças e, a muito custo, conseguiu colocar as cobertas de lado. Esboçou levantar-se, mas uma letargia e falta de ânimo, lhe jogaram de volta à lona.  Só mais meia hora – pensou.

Um barulho na janela despertou-lhe de vez. Pela janela, viu Bob e Bryan começarem uma guerra com bolas de neve. Eles o desafiaram a descer. Não foi o tamanho, porém, que deteve aquele menino, o menor da turma, no quarto. Pedro detestava o frio; e mais ainda, seus primos, aos quais respondeu levantando lentamente, e com cara de mau, o dedo médio.

Desceu as escadas coçando a lateral da bunda, com cara de sono, trajando pijama flanelado e meias. Seu avô achou a cena engraçada. Sua mãe, não:

- hei! que modos são esses? Sobe, sobe, sobe. Lave esse rosto, escove os dentes, tire esse pijama e só me apareça aqui embaixo com este cabelo penteado!

Pedro era um menino introspectivo, não gostava de muita badalação. Era mais de curtir seus heróis e criando histórias com os bonecos dados por seu avô. Embora tivesse apenas cinco anos, tinha para mais de 30 daqueles personagens, saídos das histórias infantis. Não era seu primeiro Natal com a casa cheia, mas nunca havia passado a data fora de seu país.  Era também um tempo de descobertas, em que já começava a compreender mais as coisas do mundo.

Foi nesse período que, ainda na escolinha, ouviu os primeiros rumores sobre a verdadeira identidade de Papai Noel. Mas como era próprio de sua personalidade, ficou de longe, ouvindo e racionalizando a respeito.  Não concordou, não discordou, não questionou. Pelo menos, aos seus colegas:

- Vô, por quê essa gente toda? Queria estar em casa com meus brinquedos.
- Ah! Meu neto. Você não queria estar aqui com o seu avô?
- Queria vovô!... Mas lá em casa.

Pedro gostou do abraço e do beijo que ganhou do avô, mas não o obedeceu quando este lhe sugeriu que colocasse o casaco e fosse até lá fora brincar com seus primos. Preferiu a cozinha:

- Sai daqui menino! Tira essa luva das rabanadas! Essas luvas estão sujas! Vá brincar, vai! –  disse sua avó, o expulsando.

Sem ter muito para onde ir, foi encontrar sua irmã que, no sótão, arrumava, com uma tia, os últimos enfeites de Natal:

- Venha cá, pequeno, o que você quer? Dá um beijo gostoso aqui na mana, vai. Que carinha é essa? – disse envolvendo-o como se ele fosse um bebê.

  - Táta...se o papai não veio com a gente, quem vai trazer o meu presente? Ele vai chegar ainda?
- Oh! Meu bêbe. Vai sim. Papai já ta chegando. Mas que história é essa? Quem vai trazer seu presente é o bom velhinho, o papai Noel. A mana não ajudou você a escrever sua cartinha?

Pedro olhou com os olhos um pouco arregalados para Tatiana e nada falou. Preferiu guardar para si “o segredo”. Quando chegou à porta do quarto, ainda pensou em retornar e lhe contar a verdade, mas sua irmã estava tão feliz que preferiu nada falar. Quando descia as escadas, deparou-se novamente com o seu avô:

- Está indo para onde, hein, seu moleque – indagou Sr. Alfredo, fechando-o a passagem de um lado e de outro, fazendo-lhe cócegas, até lhe pegar pela barriga e levantar-lhe até seu colo – está pesado, hein! Quer ajudar o seu avô a engraxar os sapatos?

Era tudo o que Pedro queria: ter o que fazer. Sempre atencioso e carinhoso, seu avô também lhe pareceu, naquele momento, a companhia ideal, com quem ele pudesse ter uma conversa definitiva, franca, de homem para homem, sobre aquele assunto que estava lhe proporcionando algum desconforto:

- Vovô!
- Diga, meu neto.
- A Táta não sabe quem é o Papai Noel!
- Não! Jura? E você sabe? – Pedro fez com a cabeça que sim – e, você pode contar para o Vôvo. Eu juro que guardo segredo.
- Não conta para Táta? 
- Claro que não! Juro! – disse, fazendo um “X” com os dedos e os beijando.
- Vovô...é o papai!!! – disse numa felicidade imensurável.
- xiiiii! Fala baixo – disse Sr. Alfredo, enquanto Pedro tampava a boca com suas mãos pequenas, sem tirar o sorriso, por aquela grande descoberta, do rosto.
 - Mas é? Seu pai é o papai Noel? Tem certeza?

E o garoto permanecia ali, vibrante, com aquele sorriso cativante no rosto, feliz da vida. Tanta alegria, tanta satisfação em saber que seu pai era Papai Noel, deixou Sr. Alfredo sem saber o que falar. Antes que ele pensasse em alguma coisa, porém, Pedro lhe surpreendeu novamente:

- Vovô!
- Hein. Diga, meu neto.
- O senhor também já foi Papai Noel?

Após um breve silêncio, o patriarca da família foi salvo pela chagada de seu filho, Ari, pai de Pedro. Mas antes de sair, sem querer deixar seu neto sem resposta, o avô olhou para seu neto e colocou o dedo indicador cruzado nos lábios. O menino sorriu, fez o mesmo e ambos desceram as escadas até a sala de estar.

A tarde caiu e a noite logo chegou. A mesa estava posta e os adultos conversavam. Bob e Bryan, sentados ao chão, divertiam-se com um trem que se deslocava em círculos. Pedro os observava, encostado ao sofá. Próximo à meia-noite, ouviu-se um grande estrondo na parte superior da casa e todos se engalfinharam pelas escadas. Queriam ser os primeiros a ver Papai Noel.

Pedro não saiu do lugar. Observava, ao longe, seu pai e seu tio conversando longamente à beira de uma lareira, numa outra sala em anexo. Olhou também para o relógio e viu que ainda faltavam quinze minutos. Abriu um discreto sorriso, quando um a um desceram as escadas, decepcionados. Mas quando, após um breve descuido, perdeu Sr. Ari de vista, desesperou-se. Percorreu todos os cômodos da casa. A cada pessoa que perguntava, a mesma resposta – estava aqui agora, já viu na cozinha.

Passados alguns minutos, cada mãe pegou seu filho pelas mãos e os colocou para dormir. Foram preciso uns três para segurar Pedro.  O menino estava determinado e quando percebeu que não tinha como resolver na força, deitou-se, aparentemente, resignado. Quando, do lado de fora, as luzes se apagaram, arrostou-se pelo chão até o sótão. No local, havia um velho baú que guardava, entre outras bugigangas, um velho binóculo, de seu avô. Uma veneziana, semi-aberta, foi o suficiente para que ele visualiza-se as chaminés.  

O cansaço e a longa esperam derrubaram Pedro. Os olhos ainda resistiam, ora viçosos ora desnorteados. Porém, um estalo e uma nuvem de fumaça branca o despertaram.  Luzes coloridas iluminaram as lentes de seu binóculo. Ouviu um barulho de helicóptero e uma corda brilhosa, em vermelho e verde, despencou por entre a névoa esbranquiçada. De repente, a visão: Papai Noel. Com todo o cuidado, o bom velhinho bateu à janela e entregou ao Sr. Ari e seu cunhado um grande saco grande.

Pedro afastou os binóculos cuidadosamente. Enxugou as lágrimas dos olhos e os levou de encontro novamente às lentes. Não havia dúvidas. Era mesmo seu pai que, embrulho por embrulho, recebia das mãos de Papai Noel, cada item de cada carta escrita e enviada. Aos poucos, a decepção pela descoberta de que o bom velhinho não era seu pai foi sendo substituído por uma outra alegria – Papai Noel não é meu pai, mas Ele existe – voltou a sorrir o menino.

Correu, então, novamente para a veneziana e com o binóculo em punho colocou-se em posição para dar uma última olhada em Papai Noel. Para sua felicidade, o bom velhinho ainda se preparava para partir; e antes que sumisse por completo na nuvem de fumaça,  olhou firme na direção de Pedro, colocou os dedos nos lábios, em forma de X, piscou os olhos e só depois, se foi.

Pedro voltou para o seu quarto, caminhando lentamente, mas sem a preocupação anterior em ser pego ou descoberto. Entrou no quarto, ainda em estado de choque. Deitou-se, cobriu-se.  Ficou, por alguns minutos, parado, estático, olhando para o nada. Depois, sorriu, olhou para o seu boneco do Toy Story  e lhe confidenciou.

– Não é o papai, Wood. É o vovô – risos.

E Pedro dormiu radiante, em seu Natal inesquecível.


Por: Henrique Biscardi

sábado, 18 de dezembro de 2010

ENQUANTO BEATRIZ DORMIA

Pensei em lhe contar muito do que vi por lá. Falar das coisas que aconteceram, sobre os lugares por onde andei e as experiências por que passei. Sua vontade de me beijar, porém, me pegou de surpresa.  Você nem reparou, minhas malas flutuavam dependuradas sob meus ossos, testando a resistência de minhas mãos. Condenei-me pelo tempo que passei fora e por não ter correspondido aquele abraço, aquele carinho, aquele beijo. Fiquei ali, imune e imóvel. Insensível, acrescentaria.

Mas ela deu de ombros. Abraçou-me com toda a intensidade, como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Em seus braços, sumi. Envolveu-me com tanta força que parecia ter estilhaçado tudo dentro de mim. Seu corpo tremia, seus olhos brilhavam e seu sorriso era bem maior do que o meu caráter. Seus dedos afundaram-se no algodão de meu casaco e sua língua estava macia e quente como um brigadeiro que acabara de sair do fogo. E eu ali, apagado, inerte, preocupado apenas em lembrar-me de onde havia colocado o ticket do estacionamento.


Só depois de alguns minutos todos perceberam que eu não estava só. Ana me soltou e outros tantos vieram e me abraçaram Apresentei-lhes a minha nova empresária com indisfarçável desconforto. Todos a cumprimentaram surpresos e decepcionados. Ana se esvaiu. Tentei lhe acompanhar, mas ela desapareceu por entre pessoas, carrinhos e bagagens. Queria me explicar,  lhe pedir perdão. Mas antes que eu pudesse, ela desapareceu.

Carregaram a mim e a minha bagagem até o carro. Quando cheguei em casa, meu sorriso estava amarelo e Raquel preferiu hospedar-se num hotel. Tentei explicar em vão quando não se tratava propriamente de uma namorada. Com tantas viagens e ela resolvendo tudo para que eu me ocupasse apenas de meu jogo de Tênis, acabou rolando alguma coisa. Ficaria na cidade apenas por três dias, a fim de fechar alguns contratos publicitários. Nada a mais.

Raquel foi embora e depois de alguma insistência, consegui agendar um jantar com Ana. Eu ainda a amava, com certeza. Ana era a coisa mais importante da minha vida. Deixaria minha carreira por ela, mas isso já tinha sido discutido. Cinco anos fora, o que ela esperava? 

Estava resolvido a construir minha família. Havia largado o circuito e estava fechando um contrato com uma emissora local para tornar-me comentarista. Provavelmente seria o meu último contato com minha empresária, mas o que poderia ter feito? Vocês acham mesmo que eu poderia ter dito: “Desculpe, Raquel, apesar de todo esses anos cuidando de minha carreira, não posso deixar você ter participação nesse meu último contrato por que minha ex-namorada não pode saber de sua existência”?

Ana Buscou-me em casa, pois não me recordava direito sobre ruas e lugares. Recebeu-me carinhosamente e trocamos alguns olhares durante o trajeto. Estava nervoso. Muito nervoso. Ela também. Seus lábios tremiam. Mas ela estava linda. Chegamos em pouco tempo e não havia mais espaço para se evitar um contato. Tomei a iniciativa, aproximei-me e dei-lhe o braço. Ela aceitou o meu cavalheirismo. Entramos:

- Obrigado pelo convite – agradeceu-me
- Era o mínimo que eu podia fazer. Você foi tão afetuosa em minha chegada.
- Eu sei. Olha, desculpe. Sei que não deveria..
- Como não? Eu é que deveria ter te preparado de alguma forma para a ocasião.  
- Ah! Deveria mesmo!
- Calma, Ana. Não viemos aqui para brigar, certo?
- Sim. Desculpe. É que, é que...como você pode ser tão canalha!?
- Acho que forcei uma barra. Não estamos preparados para termos essa conversa.  
- Do que você está falando, Cláudio. Nós nunca vamos estar preparados para ter essa conversa! Sabe por quê? Sabe por quê, Cláudio? Porque você é um canalha! Conversa nenhuma vai mudar isso! Passe-me a carta de vinhos, por favor.

Achei melhor não contestá-la. Optei por deixá-la desabafar e achei boa, a idéia do vinho. Sei que seria uma longa conversa. Mas tinha algumas cartas na manga. Afinal, nós havíamos terminado o namoro, em nosso último encontro. 

Pedimos o vinho, o jantar e comemos alguma coisa da cortesia oferecida pelo restaurante:
- O patê está ótimo – disse, enquanto ela sorria embaraçada – desculpe, esqueci que você não come.
- Olha, Cláudio...
- Sim.
- Seu irmão me procurou, sua irmã me ligou, minha mãe me ligou. Então, vamos acabar logo com isso, né? Não vai haver reconciliação, ok?
- Mas, você não está entendendo o que aconteceu. Raquel...
- Não fale nela comigo! Aquela pintinha preta acima dos lábios, feita no lápis, já me diz, suficientemente, o que preciso saber sobre ela.
- Você está tirando conclusões precipitadas.
- Deixa eu falar – retrucou diante de minha tentativa de interromper uma trajetória do discurso que não parecia que me seria favorável – Eu pensei bem durante esses cinco anos que você passou competindo na Europa. Senti muito a sua falta. Tentei me distrair, me ocupar com outras coisas e como deixamos livre, um ao outro, no momento de sua partida, até tentei me envolver com outras pessoas. Não consegui. Nos últimos dois meses, e Deus é testemunha, só pensei em te ver de novo. E te abraçar, te beijar, te levar para casa e fazer amor com você pelo resto de nossas vidas. Mas, naquele dia..
- Ah! Está vendo? Você também tentou se envolver com outra pessoa! E agora fica aí, me condenando.
- Escuta aqui, seu canalha – disse, segurando firme a faca, acho que sem a intenção de me agredir – quando você partiu, nós combinamos que deixaríamos a coisa acontecer naturalmente. Falamos inclusive, que seria uma prova para ver se nosso amor era mesmo aquilo que imaginávamos. E se alguém, no meio do percurso, descobrisse  o contrário, o primeiro a saber, seria o outro.
- Mas, eu não encontrei ninguém. A Raquel...
- Já falei para não pronunciar o nome de sua amante nesta mesa. Se você voltar a convidá-la para o nosso jantar, eu vou me retirar. Fui clara? 
- Está bem, conclua, então.  
- A verdade, Cláudio, é que você, culpado ou não, destruiu o que sentia por você, dentro de mim. Aquele dia, eu estava imensamente feliz com a sua volta. Preparei tudo para te receber...me preparei também. Quando te vi, meu coração saiu pela boca, parecia que você estava vindo para mim pela primeira vez em minha vida, em nossas vidas. Mas quando eu te abracei, percebi que quem estava ali, nos meus braços, me beijando, me acariciando, era outra pessoa. Não era você. Fui para casa e chorei, chorei, chorei. Chorei mais do que nos cinco anos em que você esteve fora. Parecia que eu tinha ficado viúva e acho que fiquei mesmo! Eu sei que você é o mesmo, sei que quem está aqui na minha frente é o Cláudio. Eu consigo te reconhecer como aquela pessoa amável, carinhosa e bondosa por quem me apaixonei. Pode ser loucura, mas aqui dentro, no meu coração, porém, você morreu. E tem sido uma tortura essa sua volta. Desculpe eu te falar isso...Mas eu preciso! Cada vez que ouço falar em você, cada vez que meu telefone toca, cada vez que lembro que você está aqui, tão perto e tão distante, eu choro, eu sofro. Então, Cláudio, vim até aqui para te pedir uma coisa. Sei que não deveria. Sei até que não tenho esse direito. Mas eu preciso. Preciso que você vá embora da Cidade. Olha, se eu pudesse, eu mesmo iria – prossegui segurando fortemente as minhas mãos – Mas eu não posso.  Você sabe que eu não posso. Você não! Você tem vários opções em sua vida, tem até lá a vagabunda te esperando. Vá embora, Cláudio. Você pode treinar em qualquer lugar do país, qualquer clube vai dar milhões para lhe ter. Você é novo. Ainda consegue jogar por, no mínimo, mais dois ou três anos. Por isso eu te peço. Te peço, não. Te imploro. Eu não agüento mais este sofrimento. Faz isso por mim? Você pode fazer isso por mim?
- Eu vou. Você me pede, eu vou. Vou porque te amo. Vou porque sei que cometi um grande erro. Talvez eu até pague a conta pelo resto de minha vida. Então, como último pedido, quero apenas que você reflita sobre uma coisa. Você tem razão, quando diz que posso jogar por mais dois ou três anos.  Está certa também quando percebeu  que aquela pinta acima dos lábios, feita de lápis, já dizia tudo mesmo sobre  a Raquel. Então, pense e responda: Por que resolvi largar tudo, toda a minha vida, todo o resto de minha carreira e voltar a viver aqui, agora, em nossa cidade? A minha resposta é  porque eu não conseguia mais viver longe de você. Agora, Qual é a sua?

Depois de quase um ano, estava de volta àquele aeroporto. Caminhei até a porta do elevador por três vezes e voltei. A ascensorista riu e me sugeriu as escadas. Num impulso, entrei e respirei. Apenas um andar. Passos infinitos, bem devagar. Sentei-me:

- Olá
- Olá
- Não precisava ter vindo.
- Eu sei. Mas quis vir.
- Ok?
- Ok.
- Então...vamos?
- Vamos. Já despachou suas malas?
- Sim – disse com um sorriso nervoso nos lábios.
- Eu conheço este sorriso.
- É, eu sei.
- Você acha que devemos?
- hum...acho que sim.

Até hoje, não sei dizer o que deu errado naquele primeiro reencontro ou o que deu certo neste último, há mais ou menos três anos. A única coisa que sei é que amar é um grande desafio, uma grande entrega, um mergulho, um “dar e receber” incondicional. Um exercício que tento aprimorar a cada dia, pois sei o quanto o amor é frágil, o quanto nós somos frágeis. Mas aprendi, nesses últimos anos, que quanto mais a gente tem consciência de nossa fragilidade, mais forte nos tornamos. Enquanto Beatriz , nosso lindo bebê, dorme em meus braços, reflito sobre o quanto nos tornamos fortes, conhecendo nossas limitações. Diante de nossa aparente fragilidade, Ana apenas nos observa e sorri, alimentando-se para nos alimentar, com o seu amor. 

 Por: Henrique Biscardi

domingo, 12 de dezembro de 2010

Chupa essa manga, Eduardo!

Atravessou a avenida, faceira, curtindo as buzinas em sinfonia. Foi-se embora e nem foi xingada. Uma linda medusa. Madeixas de mel, bumbum arrebitado, seios pontiagudos e um vestidinho estampado em vermelho. Do outro lado da rua, seu Said. O típico. Calça social e chinelas. Suspensório e camisa social. Na cabeça, oficialmente, apenas uma boina francesa.

Eduardo, na sombra de uma árvore. Boca melada de manga, lábios molhados de desejo. Era um pecador confesso, daqueles rejeitados até no inferno.  Kichute, cadarço amarrado no meio das canelas. Mais brancas encardidas, com marcas de bola. Calça "pescando siri" e camisa aberta até o umbigo. Seus olhos de luxúria não foram notados por aquele pobre homem que o atendia com toda educação em seu armazém.

Bateu o ponto ali, todos os dias, durante cinco longos anos. Cresceu vendo aquelas coxas se transformarem em duas toras. A academia era nova, mas o hábito recente. A sala de musculação ficava lotada, às segundas, quartas e sexta, entre 8h15 e 9h30 da manhã. Foi nesse lugar o menino virou homem ,e sentiu-se encorajado. 

Mas Betina não lhe deu muita atenção e uma tragédia logo  tirou a moça de seu caminho pela primeira vez. Seu Said a esperava, como de costume, do outro lado da avenida. Antes que o destino lhe roubasse a vida, o pobre libanês antecipou-se. Pulou na frente de um caminhão, cuja cabine, de tão alta, permitiu que o motorista visse apenas o rosto da moça. O pobre homem, esfacelado no chão, ainda conseguiu sorrir para a sua amada, incrédula, viva por fora e morta por dentro.

Betina mudou-se e Eduardo, desgostoso, foi para o exército. Fez curso para sargento das armas e perambulou por várias cidades do país. Disseram que até no exterior ele esteve. Quando retornou, seus pais e a vizinhança por quem tinha algum apreço, já haviam se mudado. Sem muitas opções, Eduardo também se foi e acabou como guarda-vidas em uma mansão, em Angra dos Reis.  

Foi quando numa bela e quente manhã de domingo, sua sorte mudou. Deitado ali, a sua frente, Betina ressurgiu. Linda, malhada e turbinada.  Eduardo, descontrolou-se e quando deu por si já havia molhado metade das pessoas que pegavam sol à beira da piscina. Como era bem quisto pela família,  preferiram não chamar-lhe a atençao. Betina, não:

- O que é isto, rapaz? Preste atenção no seu serviço!

Por alguns instantes, ficou na dúvida se aquela pessoa, diante de seus olhos, fosse mesmo Betina. Mas logo a moça deitou-se na espreguiçadeira e a tatuagem na altura da virilha afastou qualquer possibilidade de erro:

- Amor! Vamos! Tenho um compromisso social e preciso de você ao meu lado - disse alguém, com aquele ar de "maridão".  

Betina levantou-se suavemente e enrolou-se na canga.  Eduardo chegou a ouvi-la murmurar algo e lhe ofereceu um afetuoso sorriso, o suficiente para irritá-la novamente:

- Por que você sorri? Quer que eu lhe faça chorar? Quer que eu lhe faça sofrer? Cruze seu olhar novamente com os meus e você verá o que será de ti - disse a moça num tom ameaçador. 

O clima pesou. Eduardo nada entendeu. Menos ainda, quando seu patrão o chamou, meio da madrugada, deu-me algum dinheiro e lhe ordenou que "sumisse do mapa".

Eduardo viajou, uma vez mais, sem rumo. Por sorte, encontrou  um amigo de infância num navio e este o instalou em Miami. Um dia, porém, andando pela Times Square, já em Nova York, deparou-se novamente com Betina. Olhou em sua volta e ao perceber que a moça estava desacompanhada, a surpreendeu:

- Então,  o que lhe  fiz para querer o meu fim?
- Desculpe. Não estou entendendo. Quem é você?
- Ora! Não se faça de desentendida, Betina. Este é seu nome, certo?
- Sim. Mas.., como sabe?
- Cadê o maridão, hein? Cadê? Ele vai me matar, vai? Vai me matar?
- Ele não pode. Ele morreu. Faz uns 8 anos, tadinho. Morreu atropelado para me salvar.
- Sei. E depois que ele morreu, hã? Pensa que não lhe reconheci naquela mansão em Angra? Por que  me queria longe de lá, hein? Por que?  
- Não era eu! Você deve ter tido a infelicidade de conhecer minha irmã. A cléo. Nós somos gêmeas!
- Gêmeas? Que papo é esse?

Betina baixou a cabeça, levou as mãos ao rosto e chorou, copiosamente. Logo, perdeu as forças e apoiou-se em Eduardo. Ele a levou para seu apartamento onde puderam, finalmente, esclarecer o acontecido:

- Depois que meu marido morreu, minha irmã gêmea juntou-se a seu namorado, um estudante de direito. Os dois me roubaram - colocou-se em pranto, novamente, a moça - e não satisfeita, mandou alguém para me matar. Tive muita Sorte. Dona Ziza, amiga de sua mãe também, lembra-se? Pois bem,  foi ela quem me escondeu por alguns dias. Depois, deu-me algum dinheiro e fugi para cá.

O rapaz olhou incrédulo para aquele rosto lindo e angelical . Betina, aquele mulherão, aconchegada em seus braços. Maravilhosamente, aconchegada. Chegou a pensar em como um mesmo casal pode gerar, num mesmo ventre, ao mesmo tempo, pessoas tão antagônicas. Vã filosofia que se perdeu logo em seus pensamentos, enquanto se fartava naqueles seios firmes. Finalmente, eduardo a amou. Depois, adormeceram juntos,  naquela e em outras noites frias. Num domingo, porém, Eduardo amanheceu estranhamente algemado na cama, com a boca suja de manga e a casa cercada por sgentes do serviço secreto americano, o FBI. Já Betina, embarcava num vôo qualquer, rumo à Madri, com o corpo recheado de explosivos e a esperança, encorajada por seus cúmplices do Brasil, de reencontrar Said.  


Por: Henrique Bicardi

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MARCELA E A PINTA VERMELHA

Marcela detestava acordar cedo. Foi Marcelo quem passou por cima dela e alcançou o despertador. Os dois se levantaram sem muito ânimo. Olharam o céu azul cravejado de estrelas. Elas brilhavam foscamente diante dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte. A sonâmbula guardava ainda um sopro de esperança de que o tempo havia mudado e que talvez chovesse. Mas não chovia.

Ele desceu logo as escadas e começou a colocar as coisas no carro. Ela demorou-se duas horas a mais que o normal. Primeiro, no banheiro. Depois, diante do espelho, sem imaginação e disposição para ver o que lhe cabia.

Coube-lhe alguns segundos de resignação, tempo que aproveitou para deflagrar sobre si alguma fragrância e deixar cair sobre seu corpo longilíneo um leve estampado bege. Desceu as escadas com suavidade, como quem preferia não ser notada.

Uma xícara de café não foi suficiente para lhe despertar. Caiu em sono profundo por alguns quilômetros. Despertou ao som de Pearl Jam e até curtiu por alguns instantes a paisagem. Depois da parada para um pipi, subiu as pernas acima do porta-luvas. Algodão entre os dedos e um palito com algo macio na ponta, molhado de acetona, lhe divertia.

Marcelo permanecia calado. Passados alguns quilômetros, ingenuamente, balbuciou algumas palavras solenemente ignoradas. Tentou uma música mais romântica e arriscou uma apalpada nas coxas de Marcela. Ela, reclamou que o esmalte lhe borraria as unhas, mais para se livrar daquelas mãos do que por qualquer outra razão.

Mas a mão de Marcelo lhe feriu mais do que às suas unhas. Talvez ela não tivesse ainda se “dado conta” de sua presença.  Quem sabe estivesse tendo um pesadelo? Mas não estava. Marcela descobriu-se pensativa e começou a interrogar-se sobre aquela situação.  Dos questionamentos à indignação passou uma fração de segundos, tempo em que Marcelo parou para uma segunda mijada:

- Você acha que vale a pena viajar assim?

- Ué! Você não quis vir?

- Claro!  Você acha que eu rasgo dinheiro. Está pago, não está? Ou você acha que eles vão me devolver mil e duzentos reais porque minha esposa está com crise existencial?

- Marcelo! Liga a porra do carro e vamos embora. Não começa que eu volto daqui mesmo.

- hahahahahaha. Como? De jegue?

Marcelo tinha idéia da encrenca que estava por arrumar e a chamou de volta para dentro do carro. Marcela pegou o celular e falou coisas sem importância com a mãe. Depois, reclinou mais o assento e tampou os olhos com o braço direito. Tentou dormir, mas acontecimentos recentes borbulhavam em seus pensamentos. O que mais lhe incomodava naquele momento não era aquele pano de prato que custara 1,99, presente dado por sua sogra no último natal. Um elefante de cerâmica marrom, obra de arte feita por sua cunhada, lhe causava náuseas: 

- Sabe o que é, Marcelo? Não dá. Nós dois caminhamos por trilhas diferentes, nos afastamos, nossas afinidades se esvaíram com o tempo. 

- Do que você está falando?

- Da porra do elefante marrom, por exemplo. A gente trocou a tv de tubo por uma nova,  de Led. LED Marcelo!  Aquele elefantinho não tem nada a ver.

- Mas foi minha irmã quem fez!

- Fez e nos deu, né? Vê se ela tem algum na casa dela? Porra! Já era, acabou. Tira uma foto, pinta um quadro, deixa ele cair no chão sem querer, sei lá. Mas tira aquele elefante da nossa sala, por favor.

- Está bem. Vou tirar, vou tirar.

- Vai porra nenhuma! E também não quero que você tire. Na verdade, Marcelo, eu quero que você me tire da sua sala, da sua vida, sei lá.

- Mas do que você está falando?

- Não sei, Marcelo. Mas a gente está infeliz, porra! A gente nem trepa mais! Quanto tempo faz, hein? Seis meses? um ano? A gente não tem filho, Marcelo. Não chegamos nem nos 30. Porra! A gente era para trepar todo dia, enlouquecidos. Até um ano atrás, você queria comer meu rabo todo dia, agora nem minha bunda você olha mais, Marcelo!

- Não exagere, Marcela. Não exagere.

- É exagero, é exagero! Então fala...fala! Em que lado da minha bunda eu tenho uma pinta vermelha?

- O que? Porra, Marcela! Eu estou dirigindo.

- Fala Marcelo. Responde pra mim que eu chupo seu pau aqui, agora, como se a gente tivesse dois meses de namoro e não cinco anos de casados.

- Tá doida? Eu estou dirigindo, Marcela. Dirigindo! Você quer que eu bata a porra do carro? O que é que você quer? Quer matar nós dois é?

- Nós dois estamos mortos, Marcelo! Estamos pateticamente mortos. Dois jovens, cheios de vida, cheios de tesão, sentados em frente a uma tv escrota, num domingo, vendo Faustão. E você ainda ri das coisas que ele fala, Marcelo. A mesma piada. Cinco anos, Marcelo e você ainda ri! Eu sorrio é da nossa relação. Eu dou gargalhadas da nossa relação. Agora responde! Responde porra!!! Em que lado da minha bunda fica a pinta vermelha, hein.



- Direito, Marcela! Direito! A porra da pinta fica do lado direito do seu corpo.

Marcelo e Marcela se separam antes do verão passado. Soube por ele, que aquele boquete foi o contato mais íntimo que eles tiveram ao longo dos seis meses que ainda ficaram juntos após aquela viagem. Soube também que a menina recuperou o tempo perdido e hoje é atriz da indústria pornô. Criou seu próprio site, faz striper na web cam e está ganhando rios de dinheiro. Já meu amigo, continua em jejum, grudado ao seu elefante marrom, assistindo Faustão.



Por: Henrique Biscardi

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Hoje, não! Hoje, sim!


Murilo era um cara estranho. Meu amigo, mas bizarramente estranho. Dizia ser um cara azarado. Discordo. Isso ele não era! Nasceu perfeito, no Rio de Janeiro. Era o primogênito de uma família financeiramente abastada. Não tinha nenhum tipo de alergia e nem catapora na infância ele teve. Sobreviveu a duas epidemias graves de Dengue na cidade sem ter tido uma pontinha de febre e isso morando em Jacarepaguá City! Definitivamente, azarado ele não era. 

Na verdade, o cara era...sei lá, tipo...desajeitado. Tinha um coração do tamanho do mundo e sua simpatia conquistava a todos. Só que na hora de colocar a bola para dentro...Quantas vezes coloquei ele na cara do gol – vai, meu filho, faz teu nome, “si consagra” – e nada.

A Linda, por exemplo. O nome já dizia tudo. Sorrisos largos, peitos fartos, cabelos loirinhos, quase brancos. Olhos azuis, da cor do céu.  Aquela menina era um sonho. Fiquei dois meses chamando ela para sair e quando ela finalmente disse sim, perguntou-me se eu não podia levar o Murilo. Nunca tive inveja do meu amigo e coloquei ele, uma vez mais, de frente para o crime.

Naquela noite, tudo corria bem. Arranjei também uma companhia, das antigas, e logo me entendi com ela, deixando o carro e o caminho livre para Murilo se entender com Linda. De repente, a menina saiu correndo do carro, de roupa. Entrou no táxi, virou, sumiu, deixando o resto de Murilo no chão. Sem entender nada, perguntei:

- O que houve, você foi rápido demais?
- Não, cara! Não sei. A gente nem tinha começado nada. Eu ainda tava dando a idéia, falando umas coisas bonitas para ela no ouvido e de repente, ela fez aquilo, saiu correndo, sei lá. Mulher maluca.

- Mas o que você disse para ela? O que você disse? Qual foi a última frase?
- hehehehe. Eu disse para ela que ia deixá-la maluquinha com o meu Auschwitz sexual, que eu ia exterminá-la, acabar com ela.

Você pode achar que estou sendo exagerado e que aquela brincadeira, embora esdrúxula,  não fosse motivo para a menina sair correndo daquele jeito. Daria até razão a Murilo e ao leitor, se Linda não fosse judia e tivesse perdido a avó nesse campo de concentração, durante a segunda grande guerra.

Aquela não foi a única mancada de Murilo em sua vida amorosa. Em outras oportunidades - e não foram poucas - ele sempre dava um jeito de estragar tudo, quando estava quase chegando ao clímax. Deu cabeçada em uma quando tentava abrir o sutiã da moça, capotou com o carro ensinando uma outra a dirigir e afogou uma terceira ao tentar transar com a bela, dentro de um caíque, em plena lagoa de Araruama. 

As coisas pioraram quando chegou o momento dele procurar emprego. Numa primeira tentativa, espirrou secreções em cima da roupa de sua entrevistadora. Apesar da longa amizade com o seu pai, a senhora não foi sensível à falta de postura do rapaz e o demitiu antes de contratá-lo.

Entrou para a faculdade e o pai resolveu lhe sustentar por um período maior, até terminar os estudos. Fez graduação, especialização, mestrado e quando entrou no doutorado, ganhou uma bolsa. Sua mesada passou da responsabilidade de seu pai para o Estado. Deixou de ser estudante profissional aos 34 anos e foi indicado por um professor para o cargo de supervisor de Língua Portuguesa num conceituado colégio de Curitiba. Pela primeira vez na sua vida, saiu-se bem na entrevista e foi aprovado pela banca. Quando recolhia o material de sua apresentação, uma senhora, sentada ao fundo do auditório, intrometeu-se:

- Só um momento, por favor. Não estou certo de que este rapaz deva ser aprovado. Ele cometeu um erro grave em sua apresentação. Como assim “Aranhas Marron”? O certo não seria “Aranhas Marrons”?

Murilo ficou segundos preciosos em silêncio. Não que ele não soubesse a resposta na ponta da língua. Mas pensou em tudo o que viveu em sua vida até aquele momento, em todos os seus fracassos, decepções, em todas as bolas chutadas para fora. Não conseguia acreditar que uma vez mais, entraria para a história pela porta dos fundos. Respirou fundo e pensou: Hoje, não! Hoje, não!

- Prezada senhora. A palavra “marron” aplicada nesta frase é um adjetivo, pois qualifica o substantivo aranha que o antecede. Não estamos nos referindo a todos as aranhas marrons, mas a um tipo específico de aranha. O “marron” dessa frase não se refere a cor da aranha. Se assim o fosse, caberia o plural, com em aranhas azuis ou aranhas vermelhas. Este “marron”, porém, refere-se a uma particularidade, uma qualidade desse aracnídeo que o difere dos demais. Por esta razão, o termo deve permanecer com flexão de plural invariável, permanecendo no singular. 

- A senhora levantou as sobrancelhas, colocou-se de pé e sentenciou: Parabéns senhores, fizeram uma grande escolha.

Todos aplaudiram Murilo, que não se continha dentro de si de tanta felicidade. Finalmente, depois de tantos atropelos conseguia não falhar no momento decisivo - Hoje, não!!! - vibrava, cerrando os punhos -  Hoje, não!!!

Entre tapinhas nas costas, cumprimentos, abraços e sorrisos, caminhavam lentamente por um corredor até uma sala onde uma grande recepção ao novo contratado da empresa estava sendo preparada:

- Parabéns, Murilo. Você foi brilhante!!!
- Ah! Obrigado. Nem tanto quanto o cabelo roxo daquela senhora que tentou me pegar ali no final, vocês viram – hehehehe – parecia um abajur.

Todos se olharam constrangidos. A senhora saiu de trás dos rapazes e estendeu a mão direita à Murilo:     
 - Prazer. Telma Herman – Eu sou a dona disso aqui.

Murilo tremeu feito “varapau”, rezou para tudo o quanto foi santo, mas na altura dos acontecimentos a resposta as suas preces só poderia ser uma:

- Hoje sim, Murilo. Hoje, sim.

Por: Henrique Biscardi

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A escolha de Bernardo

Chegou mais cedo em casa e o pegou num momento de distração. Não havia cartas, cigarros, bebidas e mulheres. Só um corpo cansado, moído, jogado semi nu ao sofá. Ele levantou-se rapidamente e estremeceu diante de sua presença:

- Ah, por isso que eu chego em casa à noite, o jantar está atrasado e você me diz que não teve tempo de fazer nada.

Sofia pegou as sacolas e seguiu para o quarto. Bernardo se esticou e aparou o aspirador de pó que ameaçava cair no chão. Lembrou-se da roupa no varal e por sorte ainda não chovia. Caminhou até o quintal e de lá observou os garotos jogando bola em uma quadra próxima. Lembrou-se da infância e depois da adolescência. Com a vassoura na mão, viajou no tempo e no espaço. Até para sonhar, era preciso disfarçar.

Sua vida começou a mudar aos 17 anos. Estava cursando o último ano do ensino médio e ao invés das aulas de apoio, os ensaios nos fundos do colégio. Tocava guitarra e cantava. O auge da carreira foi no Garage, na Praça da Bandeira, e uma “palinha” que deu nos quinze anos de alguém, no Círculo Militar. Depois disso, entrou em decadência.

Os amigos da banda eram mais abastados financeiramente e conseguiram o ingresso numa universidade de ensino privado. Bernardo dançou e às duras penas conseguiu um emprego de atendente num laboratório de análises clínicas e exames. Lá, conheceu Sofia que encantou-se pela voz rouca e pelo som que emanava de seu violão. Mas, segundo ela, não ficava bem para uma médica já com uma certa notoriedade entre a classe, envolver-se com o cara que recebe “potinhos com coco”. Fez-lhe, então, a proposta para que ele a servisse como secretário e marido.

Logo no primeiro mês, as coisas ficaram bem definidas. Bernardo a satisfazia como marido e era um fracasso como assistente. Após um seminário nos EUA, a falta de um segundo idioma, faz Sofia despedi-lo de sua função secundária. Dispensou também a empregada e um novo arranjo ficou estabelecido. O tempo necessário a esses esclarecimentos foi infinitamente superior à paz do rapaz. Em sua retrospectiva, bem antes da lua de mel, Sofia já berrara o seu nome:  

- Bernardo! Larga isso aí. Pega aqui, olha. Vá à padaria, compre um franguinho para a gente almoçar que eu já estou azul. Ah! É para comprar na padaria lá de baixo. Essa aqui da esquina, não cozinha direito o frango.

Bernardo detestava descer a ladeira. Quase sempre, encontrava os amigos de infância que cochichavam piadinhas e riam de sua inusitada condição. Mas encará-los era uma opção mais aceitável do que contrariar Sofia. Então, partiu para o sacrifício.

Logo que passou da esquina, encontrou alguns de seus ex-companheiros sentados à mesa com o violão e algumas garrafas de cerveja. Havia também algumas mulheres, crianças e carrinhos de bebês. Curtiam a manhã de sábado, ensolarada, sem grandes preocupações. E essa era a esperança de Bernardo em passar desapercebido:

- Olha quem está aí..chega aí – disse um
- Como se pudesse – murmurou o outro – enquanto todos riam.

Bernardo apenas acenou. Entrou na padaria e ficou vendo os frangos rolarem. Só faltou sentar-se, igual  a um vira-latas. Comprou a ficha e ficou ali, novamente, hipnotizado:

- Chega aqui Bê! Senta aqui com a gente!

Um fúria incontrolável o tirou de sua inércia. Atravessou a rua e sentou-se confiante, cabeça erguida, determinado. Acendeu um cigarro, pegou o primeiro copo de cerveja e o virou. Ofereceram a ele, o violão. Começou bem, com Legião Urbana. Desfilou todos os grandes sucessos do pop rock dos anos 80 para todos os públicos que passaram por lá no início daquela tarde. Às quatro, o tempo fechou:

- O que significa isso? De quem é este copo de cerveja, este cigarro, este violão? Cadê o nosso frango?
- Em primeiro lugar, seja educada e dê boa tarde para todos.
- Você ficou doido – disse sacando-o de sua cadeira.

Bernardo desvencilhou-se do braço de Sofia e prosseguiu em sua insubordinação:

- Chega – O seu maldito frango está ali, é só pegar, está pago – disse apontando para a padaria. Agora, vá para casa e faça bom proveito.

- Preste bastante atenção Bernardo – ameaçou Sofia com o dedo indicador em riste – eu vou atravessar aquela rua e vou lá pegar a porra do frango. Se quando eu chegar em casa, a mesa não estiver posta e o senhor não estiver tomando um banho, sua mordomia vai acabar. Não vou te dar mais nada. Você vai ter que trabalhar para se sustentar porque eu não estou aqui para bancar nenhum vagabundo beberrão, entendeu?

Bernardo aproximou-se lentamente, olhou nos olhos de Sofia e lhe disse pausamente:

- Escute aqui você, Sofia. Atravesse a rua, se quiser. Coma o frango, também se quiser. Mas não enche a porra do meu saco! Se você falar mais alguma coisa, todas as suas amigas, colegas de trabalho, pacientes, familiares e afins vão conhecer o outro lado de Sofia. Todos vão saber, por exemplo, meu amor, o quanto você gosta de ser sodomizada na cama? TÁ ME OUVINDO? TÁ ME ENTENDENDO?

Bernardo exibia um sorriso jamais visto em seu rosto quando o rapaz da padaria o chamou:

- Está bom este aqui para o senhor? Está bem fritinho.
- Sim, sim. Este está bom.

Subiu a ladeira rapidamente para o frango não esfriar. Entrou, tomou um banho, colocou a mesa e chamou Sofia para o almoço:

- Depois do almoço, eu termino de passar o aspirador, está bem, meu amor?
Sofia passou-lhe a mão no rosto e os dois comeram em silêncio.   

Por: Henrique Biscardi

sábado, 20 de novembro de 2010

UMA MENINA ME ENSINOU...

Uma menina me ensinou...

Meus amigos ficaram decepcionados quando abandonei minha vida quase “mundana”. Luiz Alberto, tá maluco! – exclamavam. Logo eu que vivi com meus companheiros de infância as maiores bizarrices do mundo, permanecia apaixonadamente fiel, adepto do celibato.

Esperei três longos anos por aquele momento e quando ele finalmente chegou, sobraram apertos, amassos, forças e braços. Houve cotoveladas nos vidros, buzina indesejada, banco despencado e freio de mão se soltando. A fúria durou por cerca de 10 minutos, tempo em que o mar, ao longe, parou.

Eu perguntei, ela não respondeu. Ligou o motor do carro,  abriu as janelas, fechou os olhos e suspirou. Esticou-se no bando, repousou a cabeça no vidro e olhou as estrelas. Eu, petrificado. Marília, mulher. Perdi meus olhos em seus finos cabelos finos que rodeavam os redemoinhos de suas entranças.  Ela ali, Sublime. Esticou os braços para trás e seus mamilos rosados, já relaxados, combinavam com as suas bochechas risonhas e os olhos fechados. E eu, ali, desesperado.

De repente, algo perturbador invadiu os meus pensamentos. Lutei por alguns minutos, tentando disfarçar o incomodo que me causava. Quando dei por mim, me via ali, atônito, tocado pela indisfarçável desfaçatez de minha outrora pudica.  Meses, eu o lobo, ela a Chapeuzinho vermelho. Agora, completamente nua num banco da frente de um chevelho enferrujado, ano 79, com o dedo na boca e aquele olhar de mulher rodriguiana. 

Levantou os pés e os colocou também no assento. Deitou a cabeça sobre os joelhos e finalmente olhou para mim. Voltou-se para as chaves do carro na ignição e desafio-me a sair dali. Ela deseja voar, sentir o vento, flutuar. Talvez imaginasse que o vento entrando pelas janelas, esvoaçando seus lindos e compridos cabelos loiros, lhe presenteasse com aquela sensação. Talvez, então, mudasse seu sorriso e voltasse a ser cândida!

Saí desesperado. Caminhamos alguns minutos pela escuridão de meus pensamentos. A estrada estava vazia e as poucas lâmpadas desapareciam no retrovisor. O frio da estrada trouxe-a de volta até meu peito. Marília desejou meu calor, mas eu permaneci frio. Lembro-me de que não se deu por vencida. Segurou minha mão, colocou-a em seu peito, fechou os olhos, suspirou e deitou-se sobre minhas pernas. Virou o rosto na direção do volante e ao perceber que o carro parava, colocou silenciosamente meu rosto entre suas mãos. Fixou seus pensamentos em meus olhos e sentiu um punhal atravessando seus órgãos, sufocando os seus gemidos.

Minha insegurança foi, aos poucos, despertando-a de seus sonhos, transformando-os em delírios. Se ela pudesse ao menos sorri...mas ela não sorria. A tensão foi aumentando e a felicidade daquele momento foi se transformando em decepção. Um frio subido e mórbido foi tomando conta de seu corpo. Encheu-se de casaco e dúvidas.

Passamos o resto da noite como dois estranhos. Tentei uma reaproximação ao chegarmos à casa em que estávamos hospedados, mas ela repeliu qualquer tentativa de reaproximação. Sobrevivi à noite, traçando táticas para reconquistá-la. Acordei pela manhã e já não a encontrei mais à mesa do café, ao sofá ou em qualquer outro lugar. Mariana logo chegou em meu carro. Não houve uma palavra - disse-me ela - apenas lágrimas.

Saí desesperado em busca daquele ônibus que nunca encontrei. Natália foi-se embora, para sempre. Algum tempo depois, tive a sorte de reencontrá-la numa outra mulher com quem acabei me casando. Soube que ela também se reencontrou. Bobagem minha acreditar que seria diferente, mas durante algum tempo temi que sim.

Naquele dia, prometi que jamais voltaria a ofereçer a alguém, um amor que fosse incapaz de realizá-lo. Ninguém sente falta daquilo que jamais sentiu. Somos responsáveis por aquilo que cativamos. Se não pretendes magoar alguém, conheça suas limitações e seus limites. Porém, se algum dia tiveres a pretensão de libertar alguém, pense bem antes e, acima de tudo, liberte-se.  Amar custa caro, dá trabalho, mas sempre vale a pena.

Por: Henrique Biscardi

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Caminhos e travessias

Tive a certeza de que estava ficando velho quando percebi que ficava mais deitado do que meu labrador de 12 anos, que nem o rabo balançava mais. Ficava ali, na varanda, e só na hora do almoço se dava ao trabalho de levantar os olhos para aquele senhor patético que, apesar de tudo, ainda o alimentava.

Mas até aquela tarde eu ainda acreditava em Papai Noel e na bela moça com biquíni de oncinha que vivia pegando sol na piscina e me chamava de tigrão. Naquela tarde, porém, apenas três copos de caipirinha  já me derrubaram. Lembro-me de colocar a mão na cabeça e de a sentir molhada.  Depois disso, vi pequenos flashes de luz branca e cheguei a pensar que caminhava para a luz.

Ao acordar, os primeiro brilhos vieram dos olhos de minha filha. Fiquei feliz em ver como ela ainda conseguia chorar por mim. Em seguida, para não perder a prática, olhei para o generoso decote da enfermeira que mexia no soro e com as minhas genitais, dando-me a certeza de que realmente estava vivo. Minha ex-mulher trazia um lenço. Acredito que seria para um aceno de adeus, mas como a decepcionei de novo, foi obrigada a fingir que também estava emocionada.

Depois foram chegando os puxa-saco, credores e devedores, nesta ordem. Meu médico nem apareceu.  Logo ele, a visita mais esperada. Passei uma noite a mais no hospital.  Sozinho, acordado e vendo uma porção de filmes que já havia visto algumas centenas de vezes, possivelmente naqueles mesmos canais de tv a cabo. Finalmente, acabei dormindo e só despertei com a voz de Nina:

- Pai! Passou bem a noite? Já estou com a sua alta em mãos. Vamos para casa?

Que casa? – pensei. Não me agradava voltar naquele momento para o sítio. Tinha saudades do Leopoldo. O biquíni de oncinha, por questões médicas, não me faria falta por uns tempos. Mas o carro tomou outro rumo e quando percebi já estava num lindo apartamento, bem arejado e espaçoso:

- Quem mora aqui?
- Eu e meu filho, o léo. Lembra dele. Está enorme. Cinco anos!!!
- Claro que lembro! Eu mandei um presente para ele no Natal! Eu até vinha, mas vocês não queriam constrangir a sua mãe...
- Não é constrangir, é constranger. E nós não te convidamos não foi por causa da mamãe. Ou você já se esqueceu o que aconteceu da última vez que você trouxe alguém aqui no Natal? Não se lembra daquela  donzela que eu encontrei dando a bunda para o meu marido, às três horas da manhã, na varanda de meu apartamento? 
- Ah! Aquilo foi um acidente. Eu errei, reconheço. Não devia ter trazido para a sua casa alguém que tinha acabado de conhecer. Mas o seu marido também errou, ele não é nenhuma flor que se cheire., você bem sabe disso! A Mary não tinha nada a ver com isso. A Mary jamais faria isso. Ela é uma lady.
- Uma lady, uma lady! Pois saiba que a sua lady, assim que você foi hospitalizado, vendeu o seu querido sítio, com o Leopoldo e tudo dentro, e se mandou para os EUA!

Sinceramente, não me espantei. O que esperar de uma pessoa que veste biquíni de oncinha, passa o dia inteiro na piscina e chama um velho de 60 anos de tigrão? Minha filha acha que algum dia eu me iludi? Posso não ter vivido uma vida descente segundo os seus padrões, mas não era nenhum bobo.

Nina também não era nenhuma trouxa. Ela sabia que logo estaria recuperado, bebendo, fumando e conhecendo outro par de biquínis de oncinha. Porque a vida é assim. Porque eu sou assim. A rã nunca deve ajudar o escorpião a atravessar o rio, porque no meio do caminho ele sempre irá picá-la, mesmo sabendo que os dois morrerão afogados. É a natureza dele!

Só amei duas mulheres em minha vida e apenas uma delas me salva sempre que estou morrendo afogado. Não sei qual é mais inteligente. Também nem sei qual delas eu mais tenha picado em minha vida. Só sei que a cada dia que passa, tenho a sensação de estar mais longe de encontrar uma rã que me faça esquecer o que sou ou que apenas me convença a desistir de atravessar o rio.   

Por Henrique Biscardi

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ

Tenho uma recente e profunda admiração por Paula Cajaty, a quem fui apresentado, ciberneticamente, por Mauro Siqueira. Pois não é que numa quinta-feira, já de madrugada, vejo uma mensagem desta moça indicando-me uma recente resenha publicada em seu blog sobre “Como se não houvesse amanhã”, livro organizado por Henrique Rodrigues contendo 20 contos inspirados na obra de Renato Russo.

Porra!!! Que sacanagem – pensei. Agora que eu já me preparava para dormir. Como é que eu posso desligar o computador sem ler a resenha da Paula e refletir sobre ela? Mais adiante, no entanto, percebo que não houve “maldade”. Paula assume que não viveu Renato Russo “em todo o seu esplendor”. Não curtiu as festas juninas da Vidal – rua Virgínia Vidal, abolição, subúrbio do Rio – nem foi ao Rock In Rio I. Paula não sabe o efeito desvelador que sua obra provocou em minha geração.

Então, o que dizer para àqueles que não viveram a efervescência de Renato Russo? Sim, porque Renato Russo era efervescente. Era como aquele velho sonrisal  distraído que caminhava a beira-mar e se dissolvia como piada velha – tipo àquela do skinny, o biscoito suicida ou da formiga de aparelhos no canto da sala. Era sua música chegar aos nossos ouvidos e havia uma osmose centrífuga e imediata. Levantava os pelos do corpo e a poeira da alma. Crianças pensando como gente grande e adultos, feito crianças. Afinal, “o que você vai ser, quando você crescer?”.

Não! Eu não dei meu primeiro beijo na boca ouvindo Eduardo e Mônica. Estava, provavelmente, chapado de vodca ou de sono, em frente ao meu 3 em 1 da National, aquele com tampa inteira, preta, de acrílico.  Mas ouvi apaixonadamente muitas e muitas vezes seus discos. Claro! Tenho o meu predileto: Quatro estações! E como a grande maioria das pessoas sã de minha geração, sou fã do Legião.

Mas, apesar de toda a idolatria, não pensem que foi unânime! até porque, já dizia Nélson Rodrigues, toda  unanimidade é burra. Cazuza lhe dizia, imagino, “quase sem querer”, que o chamavam de “ladrão, bicha e maconheiro”. Triste sina dos ídolos da geração coca-cola, que não morreram de overdose, mas de Aids.

Mas Renato Russo ultrapassava esteriótipos. Diziam até que ele era desafinado. Mas, ao contrário de Tom Jobim, isto não lhe causava dor. O que lhe causava dor era a falta de amor. E nisso, Renato Russo foi visceral, expondo todas as contradições, suas e de seu tempo.


 Talvez, para quem não viveu o amor ou não nasceu “há tempos”, Renato Russo permaneça indecifrável. Há nele, coisas que só entendem quem mastigou chicletes, Adans ou Ploc, ouvindo suas músicas, tentando se encontrar. Recorreu a Santo Agostinho. Declarou seu amor a São Paulo, São João, São Francisco e São Sebastião; aos meninos e às meninas. Acima de tudo, ao próximo. Talvez mais até do que a si mesmo.

Nunca falou em religião. Nem tão pouco possuía um ceticismo que lhe atribuíram posteriormente. Acho que nisso o jovem, de ontem e de hoje, lhe compreendeu bem.  Acredito que este seja o motivo da grande legião urbana de seguidores que não pára de crescer. Renato Russo não queria ser ídolo, não queria ser mártir, não queria ser Deus. Ele queria apenas alguém com quem conversar. Alguém que depois, não usasse o que ele disse, contra ele. Acho que conseguiu.


Henrique Biscardi

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Os amores de Rebeca.

Rebeca entrou nervosíssima e bateu a porta. Jogou-se no colchão macio que tanto amava, mas que hoje não lhe trazia boas recordações. Pensou em esfaquiá-lo, entretanto, não tinha forças nem disposição. Desfaleceu. 

Despertou, já era noite. Um banho quente para esfriar a cabeça. Chorou por alguns segundos, copiosamente. Pensou na maquiagem. Depois lembrou-se que estava embaixo do chuveiro.


- Seu FDP, não é homem, não! Por telefone? Seu covarde! COVARDE!!!


O atendente da farmácia, do outro lado da linha, nada entendeu. Olhou fixamente, por alguns segundos, para o identificador de chamadas e pensou em retornar. Melhor não - pensou. Melhor mesmo. Rebeca não estava num bom dia. Aliás, não me recordo de um dia dela que valesse a pena nas últimas semanas.  Chata, sem graça e mal humorada. Preferia vê-la de TPM. 


Encontrei-a com os olhos inchados e raivosos. Chegou atrasada. Não cogitei reclamar. Primeiro porque isto é frequente. Depois, não queria que sobrasse algo para mim. Conversamos por horas com os mosquitos. Cada um com o seu. Acabei com os palitos, da minha mesa, da mesa à esquerda e aqueles da direita também. Enrolava os papéizinhos que os embalavam, primeiro em forma de tirinhas, depois ,fazia bolinhas pequenas que caiam dentro do copo de chopp, sempre vazio.  


Só pelas duas da manhã, as primeiras palavras:


- Você é meu amigo?

- Rebeca. Hoje, ninguém lhe parece amigável. O mundo está contra você e eu não quero ficar contra o mundo.


Sabia o que ela queria e não desejava alimentar aquela neura. Deixei ela pensar mais um pouco, refletir. Conhecendo-a como eu realmente conhecia, era inevitável que ela insistiria. Minha missão tornava-se mais árdua a cada segundo. A manhã aproximava-se e o momento derradeiro era iminente.


Rebeca levantou-se subitamente. Procurou, chamou e entrou no primeiro táxi. Paguei a conta e fui atrás. Não. Não disse aquela famosa frase “siga aquele táxi”, pois o mesmo já devia estar alguns quilômetros a frente. Não havia motivos também para apressar-me. Tínhamos tempo.


Ao chegar ao aeroporto, caminhei vagarosamente até ela. Sabia que ela sentia e minha presença e que ali estaria. Segurou a minha mão, levou-a até sua boca e a beijou. Estava com os olhos marejados. Chorei também:


- Vamos embora.

- Você sabe que eu não vou. Eu quero ver. Quero ver! Quero ver para crer.

- Por que? O que importa?

- Importa – disse, apertando calorosamente minhas mãos.

Bruno caminhou calmamente até nós. Olhou com os olhos tristes como que pedisse a minha compreensão e eu o compreendia. Rebeca, não. Ficou de frente para ele, cruzou os braços e o fuzilou com seus grandes olhos amendoados. Não houve palavras. Olhos nos olhos por infinitos segundos e nenhuma sílaba saiu da boca de ambos. Não tive coragem também para cortar o silêncio. Era constrangedor. Como alguém tinha que fazer algo, o alto-falante anunciou. Era chegado o momento.


Os corações ficaram sobressaltados. Rebeca colocou a mão tampando a boca ainda fechada. Olhou fixamente para o rosto de seu ex-namorado e, incrédula, chorou.  Bruno manteve a cabeça baixa, mas pude ver que também chorava. Não havia mais tempo. Chegara o momento do ato final. Criei coragem e tomei a iniciativa. Coloquei a mão em seu ombro e ele passou-me a mala. Dei um forte abraço em Rebeca e desejei-lhe de todo o coração, ainda que em pensamento, toda a sorte do mundo.


Imagino o quanto e por quanto tempo Rebeca deve ter nos odiado. De uma hora para a outra, as duas pessoas que ela imaginava amá-la loucamente, na verdade “se amavam entre si”. Mas ela era é uma mulher incrível. É preciso ser grande para perdoar e ela nos perdoou.  


Nada acontece por acaso. Foram momentos difíceis, mas fundamentais para o nosso amadurecimento e para a construirmos a felicidade de que gozamos hoje. Não foi apenas Bruno que descobriu que me amava e eu a ele. Rebeca também descobriu que além de amar Bruno, também me amava. E nós, ao ficarmos longe dela também descobrimos que além de amarmos um ao outro também a amávamos. Só assim, pudemos viver os três, juntos e felizes, para sempre.    

Henrique Biscardi