segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Hoje, não! Hoje, sim!


Murilo era um cara estranho. Meu amigo, mas bizarramente estranho. Dizia ser um cara azarado. Discordo. Isso ele não era! Nasceu perfeito, no Rio de Janeiro. Era o primogênito de uma família financeiramente abastada. Não tinha nenhum tipo de alergia e nem catapora na infância ele teve. Sobreviveu a duas epidemias graves de Dengue na cidade sem ter tido uma pontinha de febre e isso morando em Jacarepaguá City! Definitivamente, azarado ele não era. 

Na verdade, o cara era...sei lá, tipo...desajeitado. Tinha um coração do tamanho do mundo e sua simpatia conquistava a todos. Só que na hora de colocar a bola para dentro...Quantas vezes coloquei ele na cara do gol – vai, meu filho, faz teu nome, “si consagra” – e nada.

A Linda, por exemplo. O nome já dizia tudo. Sorrisos largos, peitos fartos, cabelos loirinhos, quase brancos. Olhos azuis, da cor do céu.  Aquela menina era um sonho. Fiquei dois meses chamando ela para sair e quando ela finalmente disse sim, perguntou-me se eu não podia levar o Murilo. Nunca tive inveja do meu amigo e coloquei ele, uma vez mais, de frente para o crime.

Naquela noite, tudo corria bem. Arranjei também uma companhia, das antigas, e logo me entendi com ela, deixando o carro e o caminho livre para Murilo se entender com Linda. De repente, a menina saiu correndo do carro, de roupa. Entrou no táxi, virou, sumiu, deixando o resto de Murilo no chão. Sem entender nada, perguntei:

- O que houve, você foi rápido demais?
- Não, cara! Não sei. A gente nem tinha começado nada. Eu ainda tava dando a idéia, falando umas coisas bonitas para ela no ouvido e de repente, ela fez aquilo, saiu correndo, sei lá. Mulher maluca.

- Mas o que você disse para ela? O que você disse? Qual foi a última frase?
- hehehehe. Eu disse para ela que ia deixá-la maluquinha com o meu Auschwitz sexual, que eu ia exterminá-la, acabar com ela.

Você pode achar que estou sendo exagerado e que aquela brincadeira, embora esdrúxula,  não fosse motivo para a menina sair correndo daquele jeito. Daria até razão a Murilo e ao leitor, se Linda não fosse judia e tivesse perdido a avó nesse campo de concentração, durante a segunda grande guerra.

Aquela não foi a única mancada de Murilo em sua vida amorosa. Em outras oportunidades - e não foram poucas - ele sempre dava um jeito de estragar tudo, quando estava quase chegando ao clímax. Deu cabeçada em uma quando tentava abrir o sutiã da moça, capotou com o carro ensinando uma outra a dirigir e afogou uma terceira ao tentar transar com a bela, dentro de um caíque, em plena lagoa de Araruama. 

As coisas pioraram quando chegou o momento dele procurar emprego. Numa primeira tentativa, espirrou secreções em cima da roupa de sua entrevistadora. Apesar da longa amizade com o seu pai, a senhora não foi sensível à falta de postura do rapaz e o demitiu antes de contratá-lo.

Entrou para a faculdade e o pai resolveu lhe sustentar por um período maior, até terminar os estudos. Fez graduação, especialização, mestrado e quando entrou no doutorado, ganhou uma bolsa. Sua mesada passou da responsabilidade de seu pai para o Estado. Deixou de ser estudante profissional aos 34 anos e foi indicado por um professor para o cargo de supervisor de Língua Portuguesa num conceituado colégio de Curitiba. Pela primeira vez na sua vida, saiu-se bem na entrevista e foi aprovado pela banca. Quando recolhia o material de sua apresentação, uma senhora, sentada ao fundo do auditório, intrometeu-se:

- Só um momento, por favor. Não estou certo de que este rapaz deva ser aprovado. Ele cometeu um erro grave em sua apresentação. Como assim “Aranhas Marron”? O certo não seria “Aranhas Marrons”?

Murilo ficou segundos preciosos em silêncio. Não que ele não soubesse a resposta na ponta da língua. Mas pensou em tudo o que viveu em sua vida até aquele momento, em todos os seus fracassos, decepções, em todas as bolas chutadas para fora. Não conseguia acreditar que uma vez mais, entraria para a história pela porta dos fundos. Respirou fundo e pensou: Hoje, não! Hoje, não!

- Prezada senhora. A palavra “marron” aplicada nesta frase é um adjetivo, pois qualifica o substantivo aranha que o antecede. Não estamos nos referindo a todos as aranhas marrons, mas a um tipo específico de aranha. O “marron” dessa frase não se refere a cor da aranha. Se assim o fosse, caberia o plural, com em aranhas azuis ou aranhas vermelhas. Este “marron”, porém, refere-se a uma particularidade, uma qualidade desse aracnídeo que o difere dos demais. Por esta razão, o termo deve permanecer com flexão de plural invariável, permanecendo no singular. 

- A senhora levantou as sobrancelhas, colocou-se de pé e sentenciou: Parabéns senhores, fizeram uma grande escolha.

Todos aplaudiram Murilo, que não se continha dentro de si de tanta felicidade. Finalmente, depois de tantos atropelos conseguia não falhar no momento decisivo - Hoje, não!!! - vibrava, cerrando os punhos -  Hoje, não!!!

Entre tapinhas nas costas, cumprimentos, abraços e sorrisos, caminhavam lentamente por um corredor até uma sala onde uma grande recepção ao novo contratado da empresa estava sendo preparada:

- Parabéns, Murilo. Você foi brilhante!!!
- Ah! Obrigado. Nem tanto quanto o cabelo roxo daquela senhora que tentou me pegar ali no final, vocês viram – hehehehe – parecia um abajur.

Todos se olharam constrangidos. A senhora saiu de trás dos rapazes e estendeu a mão direita à Murilo:     
 - Prazer. Telma Herman – Eu sou a dona disso aqui.

Murilo tremeu feito “varapau”, rezou para tudo o quanto foi santo, mas na altura dos acontecimentos a resposta as suas preces só poderia ser uma:

- Hoje sim, Murilo. Hoje, sim.

Por: Henrique Biscardi

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A escolha de Bernardo

Chegou mais cedo em casa e o pegou num momento de distração. Não havia cartas, cigarros, bebidas e mulheres. Só um corpo cansado, moído, jogado semi nu ao sofá. Ele levantou-se rapidamente e estremeceu diante de sua presença:

- Ah, por isso que eu chego em casa à noite, o jantar está atrasado e você me diz que não teve tempo de fazer nada.

Sofia pegou as sacolas e seguiu para o quarto. Bernardo se esticou e aparou o aspirador de pó que ameaçava cair no chão. Lembrou-se da roupa no varal e por sorte ainda não chovia. Caminhou até o quintal e de lá observou os garotos jogando bola em uma quadra próxima. Lembrou-se da infância e depois da adolescência. Com a vassoura na mão, viajou no tempo e no espaço. Até para sonhar, era preciso disfarçar.

Sua vida começou a mudar aos 17 anos. Estava cursando o último ano do ensino médio e ao invés das aulas de apoio, os ensaios nos fundos do colégio. Tocava guitarra e cantava. O auge da carreira foi no Garage, na Praça da Bandeira, e uma “palinha” que deu nos quinze anos de alguém, no Círculo Militar. Depois disso, entrou em decadência.

Os amigos da banda eram mais abastados financeiramente e conseguiram o ingresso numa universidade de ensino privado. Bernardo dançou e às duras penas conseguiu um emprego de atendente num laboratório de análises clínicas e exames. Lá, conheceu Sofia que encantou-se pela voz rouca e pelo som que emanava de seu violão. Mas, segundo ela, não ficava bem para uma médica já com uma certa notoriedade entre a classe, envolver-se com o cara que recebe “potinhos com coco”. Fez-lhe, então, a proposta para que ele a servisse como secretário e marido.

Logo no primeiro mês, as coisas ficaram bem definidas. Bernardo a satisfazia como marido e era um fracasso como assistente. Após um seminário nos EUA, a falta de um segundo idioma, faz Sofia despedi-lo de sua função secundária. Dispensou também a empregada e um novo arranjo ficou estabelecido. O tempo necessário a esses esclarecimentos foi infinitamente superior à paz do rapaz. Em sua retrospectiva, bem antes da lua de mel, Sofia já berrara o seu nome:  

- Bernardo! Larga isso aí. Pega aqui, olha. Vá à padaria, compre um franguinho para a gente almoçar que eu já estou azul. Ah! É para comprar na padaria lá de baixo. Essa aqui da esquina, não cozinha direito o frango.

Bernardo detestava descer a ladeira. Quase sempre, encontrava os amigos de infância que cochichavam piadinhas e riam de sua inusitada condição. Mas encará-los era uma opção mais aceitável do que contrariar Sofia. Então, partiu para o sacrifício.

Logo que passou da esquina, encontrou alguns de seus ex-companheiros sentados à mesa com o violão e algumas garrafas de cerveja. Havia também algumas mulheres, crianças e carrinhos de bebês. Curtiam a manhã de sábado, ensolarada, sem grandes preocupações. E essa era a esperança de Bernardo em passar desapercebido:

- Olha quem está aí..chega aí – disse um
- Como se pudesse – murmurou o outro – enquanto todos riam.

Bernardo apenas acenou. Entrou na padaria e ficou vendo os frangos rolarem. Só faltou sentar-se, igual  a um vira-latas. Comprou a ficha e ficou ali, novamente, hipnotizado:

- Chega aqui Bê! Senta aqui com a gente!

Um fúria incontrolável o tirou de sua inércia. Atravessou a rua e sentou-se confiante, cabeça erguida, determinado. Acendeu um cigarro, pegou o primeiro copo de cerveja e o virou. Ofereceram a ele, o violão. Começou bem, com Legião Urbana. Desfilou todos os grandes sucessos do pop rock dos anos 80 para todos os públicos que passaram por lá no início daquela tarde. Às quatro, o tempo fechou:

- O que significa isso? De quem é este copo de cerveja, este cigarro, este violão? Cadê o nosso frango?
- Em primeiro lugar, seja educada e dê boa tarde para todos.
- Você ficou doido – disse sacando-o de sua cadeira.

Bernardo desvencilhou-se do braço de Sofia e prosseguiu em sua insubordinação:

- Chega – O seu maldito frango está ali, é só pegar, está pago – disse apontando para a padaria. Agora, vá para casa e faça bom proveito.

- Preste bastante atenção Bernardo – ameaçou Sofia com o dedo indicador em riste – eu vou atravessar aquela rua e vou lá pegar a porra do frango. Se quando eu chegar em casa, a mesa não estiver posta e o senhor não estiver tomando um banho, sua mordomia vai acabar. Não vou te dar mais nada. Você vai ter que trabalhar para se sustentar porque eu não estou aqui para bancar nenhum vagabundo beberrão, entendeu?

Bernardo aproximou-se lentamente, olhou nos olhos de Sofia e lhe disse pausamente:

- Escute aqui você, Sofia. Atravesse a rua, se quiser. Coma o frango, também se quiser. Mas não enche a porra do meu saco! Se você falar mais alguma coisa, todas as suas amigas, colegas de trabalho, pacientes, familiares e afins vão conhecer o outro lado de Sofia. Todos vão saber, por exemplo, meu amor, o quanto você gosta de ser sodomizada na cama? TÁ ME OUVINDO? TÁ ME ENTENDENDO?

Bernardo exibia um sorriso jamais visto em seu rosto quando o rapaz da padaria o chamou:

- Está bom este aqui para o senhor? Está bem fritinho.
- Sim, sim. Este está bom.

Subiu a ladeira rapidamente para o frango não esfriar. Entrou, tomou um banho, colocou a mesa e chamou Sofia para o almoço:

- Depois do almoço, eu termino de passar o aspirador, está bem, meu amor?
Sofia passou-lhe a mão no rosto e os dois comeram em silêncio.   

Por: Henrique Biscardi

sábado, 20 de novembro de 2010

UMA MENINA ME ENSINOU...

Uma menina me ensinou...

Meus amigos ficaram decepcionados quando abandonei minha vida quase “mundana”. Luiz Alberto, tá maluco! – exclamavam. Logo eu que vivi com meus companheiros de infância as maiores bizarrices do mundo, permanecia apaixonadamente fiel, adepto do celibato.

Esperei três longos anos por aquele momento e quando ele finalmente chegou, sobraram apertos, amassos, forças e braços. Houve cotoveladas nos vidros, buzina indesejada, banco despencado e freio de mão se soltando. A fúria durou por cerca de 10 minutos, tempo em que o mar, ao longe, parou.

Eu perguntei, ela não respondeu. Ligou o motor do carro,  abriu as janelas, fechou os olhos e suspirou. Esticou-se no bando, repousou a cabeça no vidro e olhou as estrelas. Eu, petrificado. Marília, mulher. Perdi meus olhos em seus finos cabelos finos que rodeavam os redemoinhos de suas entranças.  Ela ali, Sublime. Esticou os braços para trás e seus mamilos rosados, já relaxados, combinavam com as suas bochechas risonhas e os olhos fechados. E eu, ali, desesperado.

De repente, algo perturbador invadiu os meus pensamentos. Lutei por alguns minutos, tentando disfarçar o incomodo que me causava. Quando dei por mim, me via ali, atônito, tocado pela indisfarçável desfaçatez de minha outrora pudica.  Meses, eu o lobo, ela a Chapeuzinho vermelho. Agora, completamente nua num banco da frente de um chevelho enferrujado, ano 79, com o dedo na boca e aquele olhar de mulher rodriguiana. 

Levantou os pés e os colocou também no assento. Deitou a cabeça sobre os joelhos e finalmente olhou para mim. Voltou-se para as chaves do carro na ignição e desafio-me a sair dali. Ela deseja voar, sentir o vento, flutuar. Talvez imaginasse que o vento entrando pelas janelas, esvoaçando seus lindos e compridos cabelos loiros, lhe presenteasse com aquela sensação. Talvez, então, mudasse seu sorriso e voltasse a ser cândida!

Saí desesperado. Caminhamos alguns minutos pela escuridão de meus pensamentos. A estrada estava vazia e as poucas lâmpadas desapareciam no retrovisor. O frio da estrada trouxe-a de volta até meu peito. Marília desejou meu calor, mas eu permaneci frio. Lembro-me de que não se deu por vencida. Segurou minha mão, colocou-a em seu peito, fechou os olhos, suspirou e deitou-se sobre minhas pernas. Virou o rosto na direção do volante e ao perceber que o carro parava, colocou silenciosamente meu rosto entre suas mãos. Fixou seus pensamentos em meus olhos e sentiu um punhal atravessando seus órgãos, sufocando os seus gemidos.

Minha insegurança foi, aos poucos, despertando-a de seus sonhos, transformando-os em delírios. Se ela pudesse ao menos sorri...mas ela não sorria. A tensão foi aumentando e a felicidade daquele momento foi se transformando em decepção. Um frio subido e mórbido foi tomando conta de seu corpo. Encheu-se de casaco e dúvidas.

Passamos o resto da noite como dois estranhos. Tentei uma reaproximação ao chegarmos à casa em que estávamos hospedados, mas ela repeliu qualquer tentativa de reaproximação. Sobrevivi à noite, traçando táticas para reconquistá-la. Acordei pela manhã e já não a encontrei mais à mesa do café, ao sofá ou em qualquer outro lugar. Mariana logo chegou em meu carro. Não houve uma palavra - disse-me ela - apenas lágrimas.

Saí desesperado em busca daquele ônibus que nunca encontrei. Natália foi-se embora, para sempre. Algum tempo depois, tive a sorte de reencontrá-la numa outra mulher com quem acabei me casando. Soube que ela também se reencontrou. Bobagem minha acreditar que seria diferente, mas durante algum tempo temi que sim.

Naquele dia, prometi que jamais voltaria a ofereçer a alguém, um amor que fosse incapaz de realizá-lo. Ninguém sente falta daquilo que jamais sentiu. Somos responsáveis por aquilo que cativamos. Se não pretendes magoar alguém, conheça suas limitações e seus limites. Porém, se algum dia tiveres a pretensão de libertar alguém, pense bem antes e, acima de tudo, liberte-se.  Amar custa caro, dá trabalho, mas sempre vale a pena.

Por: Henrique Biscardi

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Caminhos e travessias

Tive a certeza de que estava ficando velho quando percebi que ficava mais deitado do que meu labrador de 12 anos, que nem o rabo balançava mais. Ficava ali, na varanda, e só na hora do almoço se dava ao trabalho de levantar os olhos para aquele senhor patético que, apesar de tudo, ainda o alimentava.

Mas até aquela tarde eu ainda acreditava em Papai Noel e na bela moça com biquíni de oncinha que vivia pegando sol na piscina e me chamava de tigrão. Naquela tarde, porém, apenas três copos de caipirinha  já me derrubaram. Lembro-me de colocar a mão na cabeça e de a sentir molhada.  Depois disso, vi pequenos flashes de luz branca e cheguei a pensar que caminhava para a luz.

Ao acordar, os primeiro brilhos vieram dos olhos de minha filha. Fiquei feliz em ver como ela ainda conseguia chorar por mim. Em seguida, para não perder a prática, olhei para o generoso decote da enfermeira que mexia no soro e com as minhas genitais, dando-me a certeza de que realmente estava vivo. Minha ex-mulher trazia um lenço. Acredito que seria para um aceno de adeus, mas como a decepcionei de novo, foi obrigada a fingir que também estava emocionada.

Depois foram chegando os puxa-saco, credores e devedores, nesta ordem. Meu médico nem apareceu.  Logo ele, a visita mais esperada. Passei uma noite a mais no hospital.  Sozinho, acordado e vendo uma porção de filmes que já havia visto algumas centenas de vezes, possivelmente naqueles mesmos canais de tv a cabo. Finalmente, acabei dormindo e só despertei com a voz de Nina:

- Pai! Passou bem a noite? Já estou com a sua alta em mãos. Vamos para casa?

Que casa? – pensei. Não me agradava voltar naquele momento para o sítio. Tinha saudades do Leopoldo. O biquíni de oncinha, por questões médicas, não me faria falta por uns tempos. Mas o carro tomou outro rumo e quando percebi já estava num lindo apartamento, bem arejado e espaçoso:

- Quem mora aqui?
- Eu e meu filho, o léo. Lembra dele. Está enorme. Cinco anos!!!
- Claro que lembro! Eu mandei um presente para ele no Natal! Eu até vinha, mas vocês não queriam constrangir a sua mãe...
- Não é constrangir, é constranger. E nós não te convidamos não foi por causa da mamãe. Ou você já se esqueceu o que aconteceu da última vez que você trouxe alguém aqui no Natal? Não se lembra daquela  donzela que eu encontrei dando a bunda para o meu marido, às três horas da manhã, na varanda de meu apartamento? 
- Ah! Aquilo foi um acidente. Eu errei, reconheço. Não devia ter trazido para a sua casa alguém que tinha acabado de conhecer. Mas o seu marido também errou, ele não é nenhuma flor que se cheire., você bem sabe disso! A Mary não tinha nada a ver com isso. A Mary jamais faria isso. Ela é uma lady.
- Uma lady, uma lady! Pois saiba que a sua lady, assim que você foi hospitalizado, vendeu o seu querido sítio, com o Leopoldo e tudo dentro, e se mandou para os EUA!

Sinceramente, não me espantei. O que esperar de uma pessoa que veste biquíni de oncinha, passa o dia inteiro na piscina e chama um velho de 60 anos de tigrão? Minha filha acha que algum dia eu me iludi? Posso não ter vivido uma vida descente segundo os seus padrões, mas não era nenhum bobo.

Nina também não era nenhuma trouxa. Ela sabia que logo estaria recuperado, bebendo, fumando e conhecendo outro par de biquínis de oncinha. Porque a vida é assim. Porque eu sou assim. A rã nunca deve ajudar o escorpião a atravessar o rio, porque no meio do caminho ele sempre irá picá-la, mesmo sabendo que os dois morrerão afogados. É a natureza dele!

Só amei duas mulheres em minha vida e apenas uma delas me salva sempre que estou morrendo afogado. Não sei qual é mais inteligente. Também nem sei qual delas eu mais tenha picado em minha vida. Só sei que a cada dia que passa, tenho a sensação de estar mais longe de encontrar uma rã que me faça esquecer o que sou ou que apenas me convença a desistir de atravessar o rio.   

Por Henrique Biscardi

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ

Tenho uma recente e profunda admiração por Paula Cajaty, a quem fui apresentado, ciberneticamente, por Mauro Siqueira. Pois não é que numa quinta-feira, já de madrugada, vejo uma mensagem desta moça indicando-me uma recente resenha publicada em seu blog sobre “Como se não houvesse amanhã”, livro organizado por Henrique Rodrigues contendo 20 contos inspirados na obra de Renato Russo.

Porra!!! Que sacanagem – pensei. Agora que eu já me preparava para dormir. Como é que eu posso desligar o computador sem ler a resenha da Paula e refletir sobre ela? Mais adiante, no entanto, percebo que não houve “maldade”. Paula assume que não viveu Renato Russo “em todo o seu esplendor”. Não curtiu as festas juninas da Vidal – rua Virgínia Vidal, abolição, subúrbio do Rio – nem foi ao Rock In Rio I. Paula não sabe o efeito desvelador que sua obra provocou em minha geração.

Então, o que dizer para àqueles que não viveram a efervescência de Renato Russo? Sim, porque Renato Russo era efervescente. Era como aquele velho sonrisal  distraído que caminhava a beira-mar e se dissolvia como piada velha – tipo àquela do skinny, o biscoito suicida ou da formiga de aparelhos no canto da sala. Era sua música chegar aos nossos ouvidos e havia uma osmose centrífuga e imediata. Levantava os pelos do corpo e a poeira da alma. Crianças pensando como gente grande e adultos, feito crianças. Afinal, “o que você vai ser, quando você crescer?”.

Não! Eu não dei meu primeiro beijo na boca ouvindo Eduardo e Mônica. Estava, provavelmente, chapado de vodca ou de sono, em frente ao meu 3 em 1 da National, aquele com tampa inteira, preta, de acrílico.  Mas ouvi apaixonadamente muitas e muitas vezes seus discos. Claro! Tenho o meu predileto: Quatro estações! E como a grande maioria das pessoas sã de minha geração, sou fã do Legião.

Mas, apesar de toda a idolatria, não pensem que foi unânime! até porque, já dizia Nélson Rodrigues, toda  unanimidade é burra. Cazuza lhe dizia, imagino, “quase sem querer”, que o chamavam de “ladrão, bicha e maconheiro”. Triste sina dos ídolos da geração coca-cola, que não morreram de overdose, mas de Aids.

Mas Renato Russo ultrapassava esteriótipos. Diziam até que ele era desafinado. Mas, ao contrário de Tom Jobim, isto não lhe causava dor. O que lhe causava dor era a falta de amor. E nisso, Renato Russo foi visceral, expondo todas as contradições, suas e de seu tempo.


 Talvez, para quem não viveu o amor ou não nasceu “há tempos”, Renato Russo permaneça indecifrável. Há nele, coisas que só entendem quem mastigou chicletes, Adans ou Ploc, ouvindo suas músicas, tentando se encontrar. Recorreu a Santo Agostinho. Declarou seu amor a São Paulo, São João, São Francisco e São Sebastião; aos meninos e às meninas. Acima de tudo, ao próximo. Talvez mais até do que a si mesmo.

Nunca falou em religião. Nem tão pouco possuía um ceticismo que lhe atribuíram posteriormente. Acho que nisso o jovem, de ontem e de hoje, lhe compreendeu bem.  Acredito que este seja o motivo da grande legião urbana de seguidores que não pára de crescer. Renato Russo não queria ser ídolo, não queria ser mártir, não queria ser Deus. Ele queria apenas alguém com quem conversar. Alguém que depois, não usasse o que ele disse, contra ele. Acho que conseguiu.


Henrique Biscardi