sexta-feira, 18 de novembro de 2011

THAIS E O VETUSTO

Atravessou o mar esperando encontrar algum refúgio, algo que lhe encantasse. Porém, logo percebeu que a fuga não havia sido uma boa escolha. Procurou e não encontrou razão para estar ali. Em seus olhos, sua alma em frangalhos. Pelo horizonte escorria, água, água e água. Estava difícil enxergar a terra. Ela perecia, cada vez mais, distante...menos firme. 

Quanto mais fustigava seus desejos, crescente era a sua febre. Talvez – pensou - não fosse uma lebre indefesa, presa num covil, a espera de seu algoz.  Talvez nem fosse grande a sua espera. Talvez. A incerteza, porém também a consumia. Mais do que a espera.

Sobre a espera, ela lembrou: durou uma semana inteira!  Telefonou, mandou e-mail, passou mensagem. - Estou ocupado, depois te ligo – Aquilo não era resposta! – Indignou-se. Ela queria mais. Queria entrega. Desejava que ele a desejasse tanto quanto ela o desejava. Seu cheiro, seu corpo, seu querer estar junto.

Foi quando algumas palavras laminaram o seu peito. Ele dizia querer estar junto. Dizia que pensava nela o dia inteiro e aquilo era tão especial, algo tão inédito em sua vida. Thais sorriu com desdenho. Achou até charme no jeito com que ele dizia aquelas mentiras doce.  Entretanto, sem razão, em um dia qualquer, ela acreditou.

Aceitou seus gracejos, confiou em seu olhar. Atravessou metade da cidade num engarrafamento para estar com ele um par de horas. Ficaram a noite inteira. Conversando e sorrindo. Apesar do desejo, não se enroscaram em camas ou lençóis. Amaram-se. Sim, amaram-se. Amaram-se na cumplicidade de suas histórias, de suas dores, em suas memórias.  Seus corpos e bocas desataram-se por vários momentos, irrompendo sobre um momento ou outro de desatino, de tristeza, de descompasso. Despediram-se algumas vezes, mas a cada distanciamento, uma outra força os reaproximava.  E o dia, amanheceu. A semana passou. Rogério, sumiu.


Thais pensou que o silêncio jamais poderia dizer mais do que mil palavras e isso a consumia. A menina, então, já não saía. A música era sua única companhia e fonte de energia. Percorreu desertos que não conhecia em sua alma, buscou abrigo onde não existia, desbravou mares cujas correntes lhe jogaram de um lado ao outro de sua solidão.

Atravessou o mar esperando encontrar algum refúgio, algo que lhe encantasse. Depois de duas semanas, voltou ao Porto. Pegou o celular e ligou?

- Thais! Por onde andou, meu amor?  Tentei deixar mensagem no seu celular, mas não consegui.

- Rogério, só liguei para dizer que eu te perdôo. Eu te perdôo, Rogério.

Thais interrompeu a ligação e jogou o celular no mar. Aquilo, para ela, havia ficado muito vetusto. 

Por: Henrique Biscardi

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

INTERVALO

Eu não quero ter essa conversa tola.
Você não percebe?
Esse controle remoto que você chama de poder.
É....sei lá...uma defesa minha.
Você sabe...homem é mais fechado, não gostamos mesmo muito de falar, principalmente de nossos sentimentos.
O que eu posso fazer? Nós somos assim.
Somos mais fechados. É nossa natureza!
Fazer o quê?

Hã?
Mas é claro que eu gosto de você, amor.
Claro que gosto!
Olha, deixa eu te contar uma coisa.  
Sabia que nem de futebol eu gosto?
Não gosto, não. É verdade.
Eu vejo porque não há mais nada de interessante para se ver na TV, estou a toa, sem fazer nada. Mas eu não deixo de fazer nada para ver futebol. É ruim, hein. Se eu tiver que sair, eu saio. Se tiver que fazer outra coisa, eu faço. 
O que por exemplo?
Sei lá, Thais. Cada idéia. Agora, assim, na lata, eu não me lembro de nada, mas é lógico que eu já deixei de ver o jogo para fazer alguma parada. Está louca!

Quer ver só? Responda-me uma coisa...Que dia da semana eu jogo futebol com os amigos,hein!!!
Hein! Hein!!!
Nenhum,Viu? Nenhum. Se eu ligasse tanto assim para futebol, era natural que eu tivesse alguma pelada durante a semana para jogar com um grupo de amigos. Mas, eu não tenho. Saio do trabalho e venho para casa para ficar aqui, com você. 

E outra coisa.Você diz que eu não quero conversar, mas isso também não é verdade.
Você é que só quer conversar na hora do jogo
Podia ser na novela, mas não!!!
Tem que ser na hora do jogo
Podia ser na hora do filme, mas não!!!
Tem que ser na hora do jogo
Nem durante o programa da Hebe, você quer conversar
Não, não. Só na hora do jogo.

Hei , hei , espera aí,
Pra que essa mala?
Como assim, Thais?
Espera, olha...está passando futebol e  Eu estou aqui...com você. Viu? Senta aqui, vamos conversar.
Não? Você quer ir?
Mas, por que?
Saco cheio, saco cheio, Isso lá é jeito de falar com o seu marido,Thais?
Futuro ex?
Como assim. Peraí , meu amor. Não faz assim, vai
Venha cá, venha...

Está bem, está bem, já te soltei. Quer ir, vai. Mas, vai para onde?
Não me interessa? Claro que me interessa. Eu sou seu marido.
Que negócio é esse?  Para com isso
O seu lar é aqui. Pára com isso, vai . Vem cá, me dê um abraço aqui, vai
Isso!!! Eu te amo, sabia?

Não, não chora
Venha cá,
Isso...me abraça.
O que foi isso, hein!!!
Você sabe que eu te amo...
Amo sim...verdade!!!

Não Thais! Calma, calma
Senta aqui, vamos conversar
Calma, calma, eu não esotu te enrolando, a gente só está conversando!
Você não queria conversar?
Faz o seguinte, então, ó
Fica essa noite na casa da sua mãe
Converse com ela, pensa bem, se acalme
Amanhã, a gente senta e conversa
Que tal? O que você acha?
Gostou da idéia, né?
Se eu te levo?
Claro que eu te levo...
Senta aqui, respira, se acalma
Deixa só dar o intervalo aqui,  que eu já te levo.




Por: Henrique Biscardi

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

THAIS E A CAMISA AUTOGRAFADA DO WASHINGTON

Abriu os olhos e desejou enrolar-se ainda mais naqueles lençóis. O sol entrava num curto espaço entre o batente das janelas e a cortina. Era possível ver que ele brilhava, como os olhos de Thais que, naquele momento, desejava um delicioso café da manhã e um mimo de seu novo namorado. Pensou que seria bom um beijo de "bom dia" na testa e na bandeja, suco, iogurte, granolas, frutas e cereais.

Marcelo estava em frente ao espelho. Tirou a camisa e com a calça de pijamas parecendo uma roupa ninja ameaçou alguns passou de Tai chi. No início, Thais até achou alguma graça. O rapaz, porém, empolgou-se e começou a ver músculos onde os mesmos não existiam. Passou as mãos sobre os cabelos e tentou inflar o peitoral. A pior parte foi fazer simulações, em frente ao espelho, de sua performance na noite anterior. Isso sim, deixou Thais perplexa e indignada:

- Mais o que é isso?

- Isso, o que?

- Essa coisa ridícula.

- Ridícula hoje, né? Ontem à noite você bem que gostou.

Thais sabia dos riscos de pegar qualquer um, em qualquer lugar. Suas amigas também já a haviam alertado – Tai, hoje 90 % dos homens são babacas. Pouco mais de 9 % são legais, mas já estão casados ou comprometidos. Nos sobra então, menos de 1% amiga!! isso é quase nada!!! Cuidado, amiga! E nada de levar homem para casa, hein !

Esse último conselho a menina ouviu. Foi para a casa do rapaz. A questão agora era, como sair de lá:

- Eu estou falando disso aqui, dentro de seu armário. Que porra  é essa, Marcelo?

- É a camisa do Washington, meu amor. Eu já havia lhe falado sobre ela.

- Quem é Washington?

- Washington, meu anjo. Aquele atacante do Fluminense. Aquele, lembra-se? O cara teve um problemão no coração, ficou um tempo parado e depois, deu a volta por cima, foi campeão...lembra-se?

 - Não.

- Washington, amor. Aquele que jogava no Fluminense!

- Porra! Marcelo, tu não é rubro-negro? Que camisa é essa do Fluminense dentro de seu armário?
- Qual o problema?

- Qual o problema? qual o problema?

Thais pegou a camisa e cheirou

- Porra!!! Está fedendo para cacete essa porra! Bem que eu estava sentindo esse cheiro desde ontem.

- Claro! É a camisa do jogo! Ele me deu de recordação. Ele é meu parceiro. Tirou do próprio corpo e me deu .

- E vc acha isso legal, Marcelo. Que porra de  homem você é que guarda a camisa de outro marmanjo no armário sem lavar, Marcelo. Você quer o que? Quer ficar sentindo o cheirinho dele?  E essa porra que você estava fazendo em frente ao espelho, Marcelo? Que coisa ridícula era aquela?  Você é gay, Marcelo? Você é gay? 

Thais sabia que gay Marcelo não era,  mas aquele malabarismo em frente ao armário extinguiu a chance daquela relação ir adiante. Para Thais, Marcelo não era gay, era ridículo e isso era muito pior. Se tem uma coisa que Thais jamais suportou foi homem ridículo.

O clima entre os dois ficou pesado. Marcelo olhava fixamente para o teto, tentando entender o que se passava na cabeça de Thais. A moça vestiu-se rapidamente, pegou a mochila e disse adeus.  No hall de entrada do prédio, Thais parou e refletiu:

- Putz! A camisa do Washington...autografada! perdi. 


Por: Henrique Biscardi

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

THAIS E ADALBERTO

Levantou-se e foi até a geladeira. Ficou parada ali, diante do nada, estática. Pegou uma fruta qualquer e dirigiu-se ao sofá, onde suas roupas estavam espalhadas. Sentou-se com as pernas cruzadas e revirou as unhas de um dos pés. Passou as mãos sobre os cabelos e sentiu-se inquieta. Levantou-se.  

Caminhou de uma ponta a outra da sala, mordendo a maça e os lábios inferiores. Foi até as janelas e as abriu. Sentiu um vento arrepiar-lhe o corpo.  Thais Fechou os olhos e deixou suas mãos lhe abraçarem. Partindo do quadril, sentiu a ponta de seus dedos em cada parte de seu corpo.  Balançou a cabeça de um lado para o outro. Suas mãos alcançaram o bico de seus seios e os contorceu, saltando um grito de alívio e prazer. Distante de qualquer coisa que lhe fizesse sentido, entregou-se ao fogo que aquecia a sua alma, deixando que a chama lhe consumisse até o último suspiro. 

Quando seus olhos se abriram, pode ver, pela fresta da porta do quarto, que Adalberto permanecia alienado de seus desejos. Seu corpo ainda tremia e foi difícil sair daquela posição fetal que tanto lhe agradava. Seu rosto, ainda ruborizado, e os olhos, esbugalhados, buscavam alguma compreensão pelo acontecido. Olhou a lua que lhe sorria, debochada, com se algum mérito tivesse naquilo. Não tinha.

A culpa era de Adalberto – pensou –  Tão bonzinho. Adalberto não existe, porra! Não existe!

Pegou o telefone. No outro lado da linha,  Luiza.

- Vou terminar com ele
- Como assim, está louca? Você acaba de ficar noiva.
- Eu sei , Lú. Mas é foda. O cara é perfeito. Ele não existe, cara.
- Calma, Thais. Calma. Respira, respira. Onde você está?
- Na casa dele, porra!
- E cadê ele?
- Dormindo, Coitado. Nem me viu gozar.
- Como assim?
- Nada, nada. Eu vou embora, vou deixá-lo.
- Calma, Thais, porra! Você vai enlouquecer o cara. Não faz isso.
- Eu preciso.
-Porra!!!  Tá maluca? Você me disse ontem que o amava! Disse que ele era um sonho. Cadê o cara educado, gentil, sincero que tanto você curtia, hein? Ele te ama porra!  o sexo entre vocês não é  maravilhoso? Que porra é essa de terminar agora, Thais?
- Eu sei Lú, mas há algo errado nele. Tem que haver? Homem assim existe? Diz para mim, quantos homens iguais ao Adalberto você conhece? Porra! Há algo de podre no reino da Dinamarca, entende? Alguma coisa está errada, cacete. Ele está escondendo alguma coisa. Ele é bom demais para ser verdade!
- Hum. Sei lá. Olhando por esse lado...Ah! desencana, amiga. Acho que você está é com medo de ser feliz.
- Porra nenhuma. Tem alguma coisa errada. Ele está me enganando, está me escondendo alguma coisa. Vou terminar. Pronto. Vou terminar. Acabou.

A moça aproximou-se do rapaz que, aos poucos, foi despertando. Olhou aqueles olhos grandes e castanhos e não a reconheceu. Estanhou a cara séria, fechada. A testa estava franzina e ele pressentiu que a moça tinha algo sério a lhe dizer. Colocou as mãos delicadamente no rosto de Thais e quis saber se algo havia lhe acontecido:

- Não, Adalberto. Ninguém ligou, eu não saí de casa e nem lembrei-me de nada que tenha acontecido e não quis lhe contar antes  para não estragar a nossa noite. O problema é que você é muito bonzinho, cara.  Eu preciso de um homem que me sacuda, que me engane, que me sacaneie, que me deixe insegura. Você está sempre tão preocupado comigo, sempre tão atencioso... deixa eu me ferrar um pouco na vida também. Eu preciso disso. Você me protege demais e isso me sufoca. Eu hoje me dei prazer e foi maravilhoso. Lembra outro dia que você me pegou me tocando?  Eu esperava que você fosse curtir, sentar ali e me ver me dando prazer e não rolou. Você foi embora e depois ficou cheio de grilos me perguntando se você não me dava prazer suficiente. Claro que dá. Você me dá muita coisa e não apenas prazer. Porém, Adalberto, minha vida, meu prazer , meu tudo não pode ser só você e você não me tem dado espaço para mim! 

Adalberto achou que talvez estivesse dormindo. ficou ali, parado, com cara de dois de paus. Nem quando Thais saiu pela porta, o rapaz se deu por convencido. Fechou os olhos e pensou em voltar a dormir.  Quando suas mãos acharam os lençõis vazios ao seu lado, ele finalmente despertou. Sentou-se à cama, colocou o rosto entre as mãos e se perguntou pela razão daquilo tudo.

Decidiu que a moça era doida e não merecia o seu lamento. Jurou tirar Thais de seu pensamento e achou mesmo que jamais veria Thais outra vez em sua vida. Talvez ele tivesse razão. Talvez. 


Por Henrique Biscardi

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A MÃO PELO CORRIMÃO DE THAIS


Talvez fosse o vento que lhe incomodasse. Talvez. Pegou a garrafa de vinho e desistiu. Pensou em...“onde estaria o abridor?”. Desistiu.  Também não queria guardar a garrafa e a deixou ali, ao lado do CD, abandonado na ponta da estante onde se apoiou. Apoiou-se para chorar, mas vontade já não tinha. Corria a mão pelo corrimão -  mão pelo corrimão - achou graça. Achou graça e chorou.

Foi naquele corrimão recém pintado que rolou o primeiro beijo. Ele queria subir, ela travou. Segurou forte em seu tórax. Alexandre a pegou pela cintura. Mãos na nuca da moça. Na boca, um sorriso para o qual Thais ainda não tinha um antídoto. Esmoreceu em seus braços.

Carregada foi pela escada acima. Sentiu-se repousar em nuvens de algodão enquanto seu corpo se despia. Os olhos cerrados, coração leve. Levitou. Agarrou os lençóis com extrema força. Urrou.

Quando recobrou os sentidos, ele estava ali. Mas Thais leu de outra forma seu sorriso. O rapaz estava feliz. Feliz por fazê-la feliz. Ela lhe fez indagações sobre as quais ele não compreendia. Quis saber sobre os motivos, como se houvesse algo além da paixão que o consumia -  Desejo? Sim, desejo. Mas que mal há nisso? Sou desejo, sou tua pele, Sou todo o teu corpo, me vejo em teu olhar!. Ela não compreendia – Quem é que você pensa enganar? Você não me ama, apenas me deseja. Como assim -  insistia - Eu te amo!  

Aquele olhar simples e direto não lhe convencia. Enrolou-se em lençois-armaduras e entrou asperamente em sua suíte. Saiu vestida e transformada. Passou por ele como se nada fosse. Alexandre ficou pensativo por alguns minutos. Pensou que talvez ela voltasse e Thais voltou. Voltou indignada por qualquer motivo alheio. Disse-lhe que queria arrumar a cama. Gostava da casa em ordem, antes de sair e de saída já estava.

O rapaz se foi. Andou quilômetros pelas calçadas vizinhas, sem qualquer direção. Entrou num bar, sentou-se num banco, colado ao balcão. Um atendente lhe interpelou. Olhou para aquele homem de avental branco e para o ambiente a sua volta. Levantou-se e se foi.

As primeiras semanas foram tristeza, incredulidade e saudade. Pensava naqueles olhos grandes e amendoados. Pensava naquela voz macia, nos braços longos que se alongavam em seu corpo. Na quentura dos lábios dela e no gosto da pele. Pensou em ligar. Pensou em ir lá. Pensou. Passou.

Sim, passou. O tempo passou e ele já não pensava. Não pensava, muito. Volta e meia, seu coração batia descompensado. Sua mente enchia-se de lembranças e lágrimas. Olhava o celular em busca de uma ligação perdida, uma mensagem. Seu coração transbordava carinho, amor e saudade. Sim. Ele ainda chorava por ela.

Suas lágrimas, no entanto, secaram. As lembranças daqueles olhos grandes, amendoados e indiferentes lhe assombravam. Não compreendia como alguém pode que lhe despertar tantos sentimentos bons e ao mesmo tempo lhe causar tanta dor.

Assim era o amor, pensou. O amor não correspondido. Na última quarta-feira, ao olhar a chuva marcar pingos grossos em suas janelas, Alexandre conseguiu enxergar o rosto de Thais.  Há alguns quilômetros de distância, sentada no último degrau da escada, cabeça apoiada ao corrimão, olhos grandes e  amendoados curtiam a segurança que a solidão lhe proporcionava. Passou a  mão pelo corrimão - mão pelo corrimão - e pensou nas mãos de Alexandre, passeando pelos seus quadris.

Por: Henrique Biscardi

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O ADEUS DE MALÚ

Foi difícil a longa caminhada pelo passeio aberto em meio a um jardim florido de primavera. Olhou para a rua, como fazia nos últimos nove meses. Já havia desistido do celular e de olhar a caixa de mensagens de seu Outlook. Parou de se torturar no msn, twitter e facebook.

Caminhou vagarosamente de volta a porta de entrada de sua casa. Seguia uma rotina de trabalho. Acendia cigarros, bebia vinhos e as vezes até pensava em sorrir, em seguir em frente. O difícil era entender o que tinha acontecido. Queria uma explicação. Não precisava ser verdade. Queria apenas que o convencesse, como se ele pudesse realmente ser convencido.

Não podia. Aquela era a maior dor de sua vida. Ele amou Malú mais do que podia, mais do que ela desejava. Ele não compreendia. Ela também não. Apenas, sentia. Longa era a estrada de Malú. Longa e imprevisível.

Quando Bebel chegou, João acreditou mesmo que havia atingido o auge de sua felicidade. Aquilo era verdade. Não imaginava, porém, os planos de Malú. Na verdade, nem ela sabia. Não sabia direito o que queria de João. Voltou porque sentiu sua falta. Voltou por um desejo de tê-lo sempre por perto, sempre ao seu lado. Isso também era verdade.

Talvez Malú tenha esquecido apenas de um detalhe. O que queria João? Não contava que ele podia não querer aquilo. Talvez ele não se importasse. Porém, era possível também que ele não desejasse ser eterno para alguém que não desejava ser eterno para ele. Malú estava feliz apenas por ter uma filha de João, carregando com ela o amor maior que alguém já lhe deu em toda a sua vida.  João estava só.

Não é fácil despedir-se de um personagem. Não é fácil despedir-se de um grande amor. Espero ter sido coerente com meus personagens. Na vida, e na arte, é preciso ter coerência e responsabilidade. Além de muito amor, é claro.


Por Henrique Biscardi

terça-feira, 9 de agosto de 2011

MALÚ E A GRAVIDEZ DE JOÃO.


Pensou em ir de carro. No entanto, sentiu que precisava andar. Caminhou por quatro quarteirões, aquecendo as mãos. Apesar de fria, a noite estava clara. Estrelas e uma lua enorme faziam ele sentir-se em paz. Uma paz que emanava do peito, que lhe fazia sorrir e sonhar. A caminhada aplacava-lhe, também, a ansiedade. João caminhava e pensava coisas sem o menor nexo, sem o menor sentido. João caminhava, despretensioso.  

Em casa, Malú estava em sintonia. Para ela, não havia diferenças entre os suspiros feitos de clara de ovo da panificadora Jóia da Vila ou os croissant de chocolate da Via Viena. Ela não comia doces, não se importava com doces. Importava-se com João e tinha temores sinceros de que ele viesse a enfartar.

Há meses João vivia assim: Quer água, meu amor? Você está bem? O travesseiro está numa altura boa? Foi tudo bem no trabalho? Algum sangramento? Tontura? No terceiro mês, Malú não suportou a pressão e gritou: Porra! Não enche o meu saco, João!!! Eu não estou doente, caralho. Estou grávida, João!!! grávida!!!

Desde então, João era só silêncio. Mas Malú o conhecia. Ela sabia que, mesmo sem dizer uma palavra, ele a estava observando e lhe cercava de todos os cuidados. A menina aprendeu a conviver com isso e para não explodir de novo, mandava ele para lugares cada vez mais distantes. No começo, o rapaz atendia os seus pedidos de carro e voltava mais rápido do que ela desejava. Malú, menina esperta, percebeu a falha em sua tática e passou a lhe mandar várias vezes a rua, em distâncias menores.

Dessa forma, o equilíbrio foi alcançado.  João estava caminhando e já perdera cinco quilos. Enquanto sua esposa ganhou preciosos tempos em que podia fazer algumas estripulias, como dar uma malhada de leve, uma limpada básica na casa ou mesmo preparar o próprio jantar.

Naquela noite de quinta, Malú mandou João para bem longe. O rapaz distraiu-se com as calçadas largas e a fumaça que saia de sua boca ao respirar. Foi mais longe do que costumava. Mas, àquele dia, estava aparentemente calmo, tranquilo. Caminhou vagarosamente, tanto na ida, quanto na volta, cantarolando cantigas de sua juventude.

Quando chegou em casa, já perto das onze, com um largo sorriso no rosto. Trazia em uma das mãos geladas, uma bela torta de amoras frescas que certamente Malú jogaria em sua cabeça, estivesse ela a caminho do hospital – pensou João.

Tudo ficou turvo diante das vistas do pobre rapaz. Um arrepio gelado subiu-lhe pela espinha dorsal. João saiu correndo, sem rumo e sem torta pelo meio da rua. Pensou em chamar por vizinhos, policia, ambulâncias. Abri novamente as portas de sua casa e caminhou até o quarto. Ficou errático ao se deparar com  Malú. A moça estava deitadinha, de lado, na cama.  Saboreava um copo de suco de frutas, gelado, entretendo-se entre um programa de entrevistas que passava na televisão e a revista que tinha em mãos. João procurou Bebel pela casa inteira:

– De novo não, João. Ai, meu Deus. Amor, senta aqui – disse Malú puxando João pela manga direita de seu moletom. Pare de se preocupar. Quando Bebel estiver chegando, eu te aviso. Pare de ficar nesse desespero e não esquece de levar o celular quando sair. Vai. Tome ele aqui. Aproveita e leva o Fred para passear que ele ainda não fez coco hoje.

 Pensou em ir de carro. No entanto, sentiu que precisava andar. Caminhou por quatro quarteirões, aquecendo as mãos...João e seu labrador. 

Por: Henrique Biscardi

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A ENTREGA DE MALÚ

O vento soprou forte naquela tarde de outono em São Paulo. Folhas e galhos retorcidos cobriam parte da calçada por onde passou aquele par de botas, de passos firmes e apressados. Um perfume conhecido invadiu o oitavo andar do velho prédio da rua Castanheira, onde olhos enfadonhos observavam a fina chuva cair, saboreando uma taça de um bom vinho chileno qualquer.

Porém, há muito, os dias não eram tão solitários assim para João. Na primavera passada, o rapaz conheceu Letícia. Olhos fortes e penetrantes, “a ruiva do Belenzinho” havia lhe enfeitiçado – diziam alguns amigos. O certo é que aquele homem, reconhecidamente equilibrado, passou num piscar de olhos a um Sodoma desvairado, segundo comentários que surgiam entre moradores e porteiros, em alusão às tardes quentes de sábado que se repetiam no apto. 803. 

Malú soube por Laura, uma prima confidente,  que era tudo verdade. Difícil era imaginar aquele homem, pijama de flanelas e uma calmaria que lhe aplacava o cio, fazendo as coisas que ela descrevia. Entretanto, o acaso permitiu que Roseli, uma colega de seu trabalho, lhe desse o serviço. Ocorreu que numa tarde João a convidou para subir a seu apartamento, de onde só saiu, extenuada, molhada e febril, depois de provar prazeres que jamais sentiu.   

Naquele sábado, João pressentiu que Malú voltaria e quando a brisa lhe trouxe o cheiro, a porta da rua já estava aberta. A moça desceu do salto. Não houve sequer uma palavra trocada. As malas foram deixadas ao chão. Pés descalços caminharam ao encontro de João. Mãos, por entre braços, avançaram sobre seu peito. O rapaz, fechou os olhos ao sentir o rosto de Malú apoiar-se em suas costas. A moça deixou cair o sobretudo. Depois,  desabotoou a blusa feita de linha e desatou a presilha de seu sutiã. Mamilos rosados enrijeceram-se e se esquivaram de ponta a ponta, para cima e para baixo, naquele corpo já repousava sobre tábuas que rangiam na sala de estar.

Amaram-se loucamente sem trocar olhares. Seus lábios, não. Estes, conversaram longamente, oscilando entre o crivo e o ponderável.  Seus corpos se comunicaram como nunca antes. Suas mentes não se ocuparam das horas que se precipitavam. Houve sussurros e gemidos. Ouviu-se até um toque com o cabo da vassoura de algum vizinho mal amado. João buscava Malú de todos os jeitos, por todos os lados.  E ela, finalmente, se entregou.

Após a tempestade e no descansar do calor de seus corpos, houve tempo para se compartilhar a taça de vinho que  ela resolveu também degustar. João pensou em perguntar por seus longos cabelos, mas logo a moça recuperou o fôlego e decidiu testar, uma vez mais, João.  

A garoa passou e os primeiros raios de sol iluminaram corpos suados e extenuados que se espalhavam, parte no chão, outras pelo sofá. Um lençol branco cobria metade das coxas de Malú, sobre a qual repousava a cabeça de João. Seus lábios ainda arriscavam algum gracejo. O libido, porém, sucumbiu ao cansaço e eles desfaleceram, juntos.

Durante semanas viveram assim. Muito amor , poucas palavras. Até que, naquela segunda-feira, Malú sentiu-se diferente e chamou por João:

– Eu quero.

João segurou firme em suas mãos, desceu com a cabeça até seu ventre e após o beijar sua barriga, a respondeu:

– Eu também.

Por: Henrique Biscardi

quinta-feira, 14 de julho de 2011

OS CAMINHOS DE MALÚ

Uma vez mais, deixou sua cabeça repousar nos pêlos do peito de seu amado. Sentiu aquelas mãos fortes e macias percorrerem seus longos cabelos negros. Dedos, rapidamente, chegaram à sua nuca, puxando-a, com força, pelos cabelos. Sua cabeça pendeu, graciosamente, para trás. A moça arrefeceu o brilho dos olhos, fazendo-os desaparecer por entre suas pálpebras, cerradas de prazer. Segurou firme aquele braço forte e musculoso, chamando-o para ao entorno de seu corpo. Mordeu levemente seus lábios molhados.

À beira da cama, João ficou sem saber o que fazer. Não esperava encontrar sua mulher daquele jeito. Seu corpo formava com o colchão, um arco, apoiado numa ponta pela nuca e noutra pelos calcanhares. Rosto ruborizado, com  as narinas totalmente abertas. Os seios estavam duros e pontiagudos. Os braços se esticavam para trás. Cabeça esfregando-se levemente no antebraço, como gata no cio. O dorso ergueu-se ao limite. Seus músculos contraíram-se ao limite. De sua boca, pode-se ouvir um leve gemido, enquanto seu corpo, exausto, desfalecia na cama. 

Ao recobrar os sentidos, desfigurada, Malú percebeu a presença de João e demorou-se a abrir os olhos. Sentia-se fraca para falar sobre o que devia ser dito. Tinha consciência de sua loucura. Bem pior, no entanto, seria não reconhecê-la. Sabia que não havia amor maior do que o daquele homem. Precisava, porém, conhecer os seus próprios limites. É preciso coragem para se abrir mão de um grande amor, de alguém que lhe faça tão bem. Malú compreendia bem a sua angústia, a sua dor.

O rapaz tentou amenizar a situação. Porém, relutou em abraçar o corpo suado de sua amada. Temia reconhecer o cheiro que exalava de seu corpo, ainda em brasa. Buscou refúgio num resto de jornal , caído ao lado de uma cadeira. Cruzou as pernas e levou a mão ao queixo. A moça reconheceu aquela expressão e pensou em chamá-lo para junto de si. Quis tanto que ele ficasse bem que seus lábios emudeceram. A noite caiu, João foi embora e Malú voltou a sonhar.

Numa manhã ensolarada de Paris, João acordou e encontrou Malú com as malas prontas. Ela foi em sua direção e lhe deu um grande abraço:

– Obrigado por tudo. Agora, já sei por onde ir. Entenderei se não esperar por mim. Mas, um dia, eu volto. 

João abaixou a cabeça de Malú e  deu-lhe um beijo na testa:

– Feche a porta ao sair, por favor – disse-lhe enquanto se dirigia ao banheiro, arrastando o seu velho roupão.

Malú então surpreendeu-se com João e sorriu. Pelas ruas de Paris, até o aeroporto, sentiu que podia partir para a vida, sem culpas. Fechou os olhos, respirou fundo e deixou-se contaminar pela deliciosa sensação de liberdade. Verdadeiramente, no lugar mais profundo de sua alma, sabia que não se tratava de libertar-se de João. Não era ele quem a aprisionava. Desejava libertar-se de suas amarras interiores, de seus medos, traumas, acalmar-se de suas inquietações. Fez planos e desejou, de verdade, dar a João a Malú que ele merecia, a mulher que ela desejava ser.  Um caminho que ela precisava percorrer, sozinha.

 Por Henrique Biscardi

terça-feira, 5 de julho de 2011

QUEM QUER SER MALÚ?

Queria muito desafivelar os cintos e saltar. Pensou que, como Malú, fosse capaz de voar. Pensou que, como Malú, pudesse ser intenso, pudesse ter coragem, ser destemido, louco, irreverente, pulsão, desejo, tesão. Pensou mesmo que, como Malú, fosse capaz de muitas coisas.

As horas passavam lentamente e sua ansiedade só fazia aumentar. As janelas ostentavam, acima, um céu azul que lhe doía as vistas. Abaixo, o mar que Malú tanto amava. 

Servido o almoço, o  cinto preto que lhe cercava as cinturas trouxe-lhe uma sensação de luto. O cheiro da comida provocou ânsia e vômito. Trancou-se no banheiro e recostou-se no armário que se alongava, acima do lavabo. Desfaleceu. Não se sabe se a indignação maior vinha por parte da tripulação, dos passageiros e do próprio João. Retirado de seu sono, que desejava eterno, e de sua solidão, voltou-se para seu assento desejando, de verdade, ser aquele super herói de borracha que voava, dentro do avião, pelas mãos daquele menino, ingenuamente desprovido das angústias que a vida para todos reserva.  

Sentiu uma sensação de Déjà vu quando desembarcou em Paris e encontrou aquele céu carregado por nuvens negras. A esperada indiferença dos comissários e agentes do aeroporto contrastou com o afetuoso abraço de Regina. João não estava preparado para qualquer tipo de afeto. Tudo lhe emocionava. Chorou  copiosamente, enquanto Fernandes carregava sua bagagem até o carro.

No leito 5 da Unidade Intensiva do Hospital Central de Paris houve alguma animação quando a paciente agarrou com força o indicador da enfermeira que lhe aferia a pressão. Os médicos foram chamados, às pressas. Malú viu-se abrindo os olhos e chamou por João.

Quando criança, a menina acreditava mesmo que seus pensamentos moviam as coisas, mudavam os rumos dos acontecimentos. Por diversas vezes, foi assim. Com sua força mental, trazia mãe ou pai de volta para a casa. Era fechar os olhos, e desejar, que seu amor logo lhe telefonava. Numa briga, olhou fixo para uma Jaca e esta, imediatamente, despencou da árvore na cabeça de sua rival. Naquela manhã, acreditou que seus pensamentos lhe trariam João e que quando ele chegasse a Paris, como num conto de fadas, ela despertaria. 

Embaixo do chuveiro, o rapaz sentiu um arrepio e quando o telefone tocou, sentou-se à banheira e esperou. Regina esmurrou a porta  e gritou: Ela despertou! Despertou!  João partiu ainda com o corpo molhado, forçadamente enxugado nas roupas que se amontoaram sobre si. Chegou ao hospital com o coração para fora do peito. Correu pelos corredores, enquanto no leito, Malú se espreguiçava e erguia braços e lábios a sua espera.

Nos corredores, porém, havia quem pensasse diferente dos dois amantes. Médicos conversavam sobre sedativos e preservação dos sistemas neurológicos, enquanto seguranças tentavam conter João. O rapaz desferiu um golpe que arrebentou o nariz do médico e, com os ombros, derrubou dois enfermeiros que se colocavam à frente da porta principal da Unidade Intensiva. Ao lado do leito, após alguma luta, houve tempo para que a enfermeira aplicasse o sedativo. João lhe jogou ao chão e levantou o corpo de Malú ao seu peito. Antes  que uma descarga elétrica, desferida por uma arma da segurança do hospital, lhe jogasse ao chão, ele a viu sorrir.  

Foi preciso a intervenção de um amigo para libertar um orgulhoso João. O rapaz não entendia o porquê de se colocar em coma uma pessoa que, justamente, acabara de sair daquele estado. Acordou, feliz, na cela de um distrito policial da região. À noite, já acomodado no quarto de hospedes da residência de sua amiga, encheu-se novamente de coragem. Estava determinado a resgatar Malú.

Quando as luzes se apagaram por toda a cidade. Na madrugada fria de Paris, dois “sobretudos” entraram apressadamente naquele táxi que se moveu, sem direção, pelo Arco do triunfo. Pela manhã, houve correria pelos corredores do Hospital Central de Paris. Na delegacia, João prestava, imóvel, novo depoimento, enquanto Fernandes procurava algum apoio junto a representação diplomática brasileira na capital francesa.

Talvez, tudo seria evitado se tivessem avisado a João que Malú havia sido transferida para uma unidade semi-intensiva. Talvez a mulher que João raptou do hospital consiga resistir e sobreviva ao tempo que ficou longe da UTI. Talvez, Malú sinta orgulho de  João. Talvez João volte, algum dia, a ver Malú. Talvez.  

Por: Henrique Biscardi

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MALÚ E OS CADEADOS DO AMOR

Achou mesmo que podia passar, aquela noite, a revelia da dor que consumia a sua alma. O jantar esfriava, repousado a mesa. Submersa em finos lençóis que protegiam o seu corpo nu dos brutos acolchoados que lhe detinham à cama, fixou seu olhar na rosa vermelha e solitária, que postada ao lado do prato, alimentava lembranças.  

As horas badalavam em sinos gigantes, aumentando a sua angústia. O dia se foi. As cortinas não foram abertas, nem as luzes, acesas. Permanecia imóvel. Não fossem as lágrimas, que percorriam os suaves contornos de seu rosto macio e repousavam-se, salgadas, em seus doces lábios carnudos, diriam que estava morta. Não estava.

Após um breve suspiro, Malú adormeceu. O jantar e a rosa sentiram-se mais abandonados.  Porém, enquando o café da manhã já lhes faziam companhia, a menina anda sucumbia à tristeza. Queria sentir João. Seu cheiro, ainda impregnado em recantos obscuros de sua boca, lhe deram coragem. A moça saiu a sua procura.

Naquele dia ensolarado, pessoas desfilavam seus T-shirts e brigavam por espaço entre os gramados cercados de Paris. Malú focava os amantes. Entrelaçados, deitados ou sentados de frente. Alguns pareciam estar na eminência de lhe oferecer ajuda. Apenas uma sensação. Sua procura era desconhecida daqueles olhares encantados. Eram seres apaixonados, curtindo uma linda manhã ensolarada de primavera, nos gramados de Paris.

A menina insistiu. Havia meses, não ligava para seu marido. Entrou e saiu da cabine algumas vezes. Discou, porém ao completar a ligação, desligou. Temia que do outro lado da linha a voz não fosse a de João – E se a solidão e o abandono fossem maior do que o seu caráter? E se encontrasse uma voz feminina, suave e feliz, a dizer-lhe “bom dia”? – Malú enfureceu-se como nos velhos tempos.

O fone ficou ali, pendurado. A menina abriu os braços e respirou o ar. Fitou o céu azul e se pôs a caminhar. Olhos azuis e pele rosada chamavam a atenção. Seu olhar libidinoso causava estranhamento em alguns que cruzavam o seu caminho. A maioria lhe sorria. Sentiam-se orgulhosos, crentes que eram únicos e belos. A sedução sempre foi sua fiel companheira.

Rumando ao norte, deparou-se com aquela ponte. Casais se bolinavam, ao longe, nos jardins. Outros,  esfregavam-se ali mesmo, no parapeito. Malú imaginou-se tocada. Fechou os olhos e sentiu as mãos de João. Mordeu os lábios,  cresceu os seios, ficou molhada. Só então, percebeu que não estava só. A maioria achou graça, mas compreendeu.  Afinal, era dia dos namorados em Paris! Apenas Malú sentiu-se envergonhada. Menos pelo delírio, muito pelo que fizera a João.      

Recostou-se na grade que percorria a Ponte das Artes. Estranhou aquele monte de cadeados afixados no local. Procurou e não encontrou número de bicicletas ou ciclistas que podiam lhes fazer sentido. Aproximou-se e soube por um senhor que não eram apenas cadeados – É o amor, menina. O amor eternizado. O elo, o religare. Não com um ser supremo. Mas com o seu coração – disse-lhe com leveza e sabedoria.

Malú emocionou-se e quis saber mais sobre a tal grade. Um casal, ela ainda com o seu vestido de noiva, lhe falou sobre os “cadeados do amor”. – São símbolos da união eterna.  As almas se encontram, se amam e se comprometem. O símbolo da união fica aqui, exposto no gradeado. As chaves, são arremessadas no Rio Sena, que torna-se assim, o guardião, para todo o sempre, de nossos segredos, de nossos tesouros, de nosso amor. 

O casal arremessou suas chaves sob o olhar inquietante de Malú. A tarde caminhava, ligeira. Já era quase noite. A menina havia  tocado em cada um dos cadeados. Nomes gravados, mensagens contidas, amores do passado, presentes e esperançosos de um futuro. Um, em especial, lhe chamou a atenção. Seu coração acelerou.  Suas vistas embaçaram. A voz, muda, desapareceu. 

Reconheceu naquele artefato prateado a data de sua união. Viu também seu nome e o de João. Tonteou e segurou-se à grade. Sua cabeça girou por parques, gramados e vielas. Retornou ao parque. Caminhou, de uma ponta a outra da ponte. Passos acelerados, mãos suadas. Malú queria João ali, naquele momento. Queria vê-lo, tocá-lo, amá-lo. 


Tentou arrancar da grade, o cadeado. Desejava para si, aquele amor. Desejava abri-lo. Precisava entendê-lo. Talvez, conseguisse compreender a sua dor, a sua angústia. Pensou se seria possível reaver João. Contida por guardas, a moça se desesperou. A grade resistiu. Malú resistiu também. Diante de si, o mar, o rio, o Sena. Nele, as chaves.

À noite, diante da porta da Unidade Intensiva do Hospital Central de Paris, apenas a certeza:
–  Não houve como conter a moça.


Por: Henrique Biscardi.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A PROCURA DE MALÚ

Ninguém soube bem ao certo se foi exigência de João. Entre terapia e separação –  dizem! – ela optou por decoração.  O curso foi intensivo, seis meses. Obteve algum sucesso imediato com as amigas da academia. Porém – também não se conhece a razão –  começou a ter dificuldades em conseguir empregados. A empresa naufragou em dívidas.

Argumentou novamente que tinha vergonha e que um bom terapeuta era muito caro. O marido a convenceu mostrando-lhe a quitação de suas dívidas, que nada tinham de decorativas.  Malú insistiu que não desejava expor sua vida a “qualquer um” e sugeriu entrevistar alguns terapeutas para se decidir. João lembrou-se da Lei Maria da Penha e preferiu deixar a água fria do chuveiro escorrer por suas têmporas.

Viu Marcos Pedrosa num programa de TV e o achou inteligente. Só descobriu que se tratava de terapia para animais quando tentou agendar uma consulta e a secretária lhe perguntou qual era a raça do paciente. A vida parecia-lhe muito difícil e achou melhor então, ir a um shopping. Faz compras, foi ao cabeleireiro e comeu alguns chocolates. Chegou em casa cantarolando e parecia pronta para novos desafios.

Uma estola branca de pele sintética, dispensada às costas do sofá da sala de estar, mudou o seu humor. Pela fresta da porta não pode ouvir o que conversavam. Sapatos de médios saltos, pernas longas e bem torneadas...Enfureceu-se. Imaginou que a lareira não fosse capaz de secar a blusa branca em cetim, nem mesmo a saia estampada em fios de lã que cobria as pernas daquela vagabunda até a altura do joelho. Pegou mesmo um pedaço de jornal e ateou fogo. O sistema de alarme contra incêndio acionado, casa inundada. Andréa achou estranho e há muito custo concordou com a entrevista. O que a fez desistir de tratar a esposa de João foi mesmo aquele incêndio.    

João preocupou-se com Malu que surgia chorando, inocente, no meio do jardim. Ela só não contava com as câmeras de segurança da casa. O rapaz teve que convencer os policiais a abafar o caso e registrá-lo como acidente. Desesperada, ela implorou para que ele ficasse. Porém, suas roupas já estavam no porta-malas de seu Corola prata, reformado, e João se foi.

No escritório, o rapaz respirava com dificuldades. Olhos inchados por lágrimas e noites sem dormir. A cinco quadras dali, Malú descia do ônibus já com alguma desenvoltura. Subia até o 10º andar do edifício Regência, onde Dr. Alcântara lhe recebia com seu velho cachimbo. Sim. Malú foi ao fundo do poço, mas não perdeu certos valores. Para ela, terapeuta bom, fuma cachimbo.

Interromperam a consulta 20 minutos mais cedo. Pneumonia, disseram ao telefone. Malú ficou desnorteada e desceu as escadas dos dez andares do prédio, de salto. Entrou no primeiro táxi e seguiu ao hospital. Esperou por três noites, até que João resistiu e saiu da unidade intensiva. Duas semanas depois, já estava em casa.  Malú não se sentia preparada para voltar. Cuidava dele, todos os dias. As noites, a moça passava na casa de sua mãe. Na terceira semana, sentiu seu homem mais forte, não resistiu e cedeu.

João estava feliz e Malú dizia, no consultório, que o casamento ainda a apavorava. Falou da moeda que passou ao marido no dia do “pedido”, da solidão e do vazio que sentia. Pensou em passar uns tempos em Londres e foi desaconselhada por seu terapeuta – a fuga não é o melhor caminho, meu anjo – disse o doutor.

O tempo passou e a moça começou a assustar seu marido de outra forma. Acordava cedo. Aproveitava as manhã com longas caminhadas. Depois, banho e terapia.  Nas tardes, aulas de Inglês e Francês. Quando a noite chegava, havia o jantar que Malú aprendeu a preparar. 

Isso não era bom, pressentia João. O rapaz testou.  Ofereceu-lhe sua infalível massagem nos pés, banhada a água morna. Percebeu que sua esposa cedeu ao mimo apenas por delicadeza. Mal pode terminar.  Malú recolheu o pé quando a toalha seca lhe tocou e João já encontrou a luz apaga quando do banheiro, saiu.

Madrugada a dentro, olhar fixo num ponto qualquer da parede, buscavam horizontes distintos. Seus corpos sentiam a falta, um do calor do outro. Havia o desejo na pele, porém uma dor imensa, no coração.

Numa sexta feira do mês de outubro, Malú encarou Dr. Alcântara de frente – Estou  indo para Paris – dizia. O médico se emocionou:

– Vá, pois já não é fuga, é descoberta.

João também não lhe segurou. No aeroporto, beijaram-se com paixão, como há muito tempo não faziam.

- Até breve, meu amor – disse ela.

- Até breve. 


Por: HENRIQUE BISCARDI

sexta-feira, 27 de maio de 2011

MALÚ E O iPOD DE HONG KONG

Tem mulher que é melhor deixar quieta, não despertar. Dependendo do dia e das circunstâncias, essa opção pode fazer toda a diferença ou mesmo tornar-se uma questão de sobrevivência.   Porém, as vezes a coisa foge ao nosso controle e aí...

Arregalou os olhos e enfurecida amaldiçoou aviões e companhias aéreas do mundo. Sobrou até para o pobre do Santos Dumont. De certo, ela nem pensou. Porém, se tivesse lembrado, nem mesmo os vôos espaciais e suas tripulações escapariam de sua ira. Desejou mesmo voltar aos tempos das cavernas e dormir, hibernar, em paz. Muitas coisas a irritavam na vida. Acordar cedo estava naquela lista. Ser acordada, a encabeçava. 

A culpa era de João. Pensou no bom comércio local, nas boas escolas de seus futuros filhos  e no fácil acesso aos meios de transportes. Na hora da compra, diante de sua amada esposa, destacou a segurança de se morar num condomínio fechado. Falou sobre as árvores que, ao redor, garantiam uma boa qualidade do ar.  Pontuou a distância entre as casas, o que, teoricamente, lhes trariam silêncio, paz e privacidade. Tudo perfeito. Aquele corno, filho da puta – disse Malú, mais tarde –  esqueceu-se, apenas, de olhar para o céu.

Enquanto pensava em aviões, Malú desconheceu aquele tom na pintura de seu quarto – Pêssego não é salmão, porra! – Pegou o telefone. A moça, do outro lado da linha, lhe garantiu que aquela havia sido a escolha de João. Na gaveta da cômoda, a nota fiscal deu razão à vendedora da loja, fato ignorado por Malú,  já se ocupando de analisar a fatura do cartão de crédito de seu marido.  

Ela insistia em saber, mas a atendente do Call Center, seu coordenador, supervisor e superintende falaram-lhe sobre sigilo e ética. Cagou. Mandou todos de volta para quem os pariu e buscou outros meios de decifrar o que significava aquela maldita sigla, JSB.

– Essa porra é motel, tenho certeza! Fi-lhô da puta! Mas eu capo, aquele corno-viado, eu capo.  – garantia a moça, enfurecida.

Um site de buscas atribuiu a procedência da loja à Hong Kong.  Califórnia também estava entre as opções. Porém,  João tinha estado há  pouco mais de um mês na Ásia. Malú já não tinha dúvidas:

 – É isso! Aquele corno esteve num “puteiro” chinês. Filho de uma puta! Porra! É foda! Me trair, tudo bem. Mas como uma puta chiensa, numa porra de uma cabana de bambu é foda. Filho da puta! Eu mato esse filho da puta. Ele vai ver o que eu vou fazer com ele. Me traiu numa cabana de bambu... fi-lhô da puta. Ele  vai ver o que eu vou fazer!

Andou de um lado a outro da casa, a pensar. Repetia a si mesma – Homem é tudo igual. Foda!  Esses putos adoram um fetiche. Mulher diferente,  oriental,  ruiva, sei lá..eles amam. Foda! Malú era muito ligada em sinais. Azar da  vendedora com traços asiáticos que bateu a sua porta.  Ofereceu-lhe bebida à base de lactose. Sorte de Migo, o rottweiler da casa. Ele não pegou a moça, mas adorou a bebida.

Malú não gostava de dirigir. Aquele dia, abriu exceção. Percorreu o trajeto de 20 km até o escritório de seu marido em apenas 15 minutos. Um segurança reconheceu a moça ao volante do Corola prateado de João, seu  preferido. Ofereceu-se para estacioná-lo. Ficou sem resposta e surpreso com a negativa de Malú. Virou as costas e preferiu não intervir quando viu a moça satisfeita e sorridente, arrastar o carro, propositalmente, na lateral do pelotis de sustentação do prédio.

Com classe, ajeitou os cabelos, retocou o batom e admirou-se diante do espelho. No 5º andar,  uma última olhada antes de deixar o elevador.  Após ser gentilmente cumprimentada pelo sócio de João, pensou na bondade de seu marido e chegou a decidir-se por recuar. Não fosse a imagem chamativa da secretária –  num decote genetoro e...ruiva!!! – teria mesmo recuado.  

Entrou triunfante pela ante-sala e dirigiu-se a provável “pegueti” de seu marido. Aqueles fios de fogo no telhado e o silicone avantajado, a incendiavam novamente. Por baixo do sobretudo que cobria seu corpo esguio, apenas uma calcinha de rendas em grená e preto, do tipo fio dental, e presa apenas por lacinhos de fios de seda.  Gostou ao saber que a diretoria estava toda reunida. Sua única preocupação era mesmo a mesa de reuniões, longa e em vidro. Será que agüentaria o seu peso?

A secretária não imaginou que Malú fosse entrar.  Nem mesmo quando a moça, sensualmente,  dirigiu-se até a porta. Do lado de dentro da sala de reuniões, olhares libidinosos e um pobre João, acabado. Do lado de fora, Verônica, a ruiva siliconada, curtia os assobios e a música, saída do iPod de Malú, último mimo de seu marido, comprado  especialmente para ela na JSB eletronics, de Hong Kong.  


POR: HENRIQUE BISCARDI

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A MENINA DO LIVRO RISCADO

Saia rodada, bata colorida e um belo sorriso. Mascava chicletes. Tirou-os da boca com a ponta dos dedos e olhou para João. O rapaz tentou não lhe dar atenção. A moça insistiu. Conversaram longamente, já à mesa. Enquanto comia, disse a ele que queria trepar. O rapaz tinha um compromisso e lhe ofereceu uma carona. Na despedia, um beijo e um bilhete com o endereço.  

Uma chuva torrencial caia a sua frente. Andou quilômetros pelo nada. Sem saber que havia chegado, atolou as rodas no barro. Desceu do automóvel e a lama parecia sugar-lhe as pernas. Um senhor magro, de pele curtida e mãos firmes, lhe prestou socorro e o convidou a taverna.  João olhou em volta. Ambiente escuro e sombrio. Aceitou de bom grado a manta e uma caneca de  “quentão”. Enquanto seu corpo se aquecia, o velho acendeu seu cachimbo de fumo adocicado.

Algumas perguntas iniciais tiveram respostas evasivas. O homem mudou de feição quando João perguntou por Bebel. Os olhos cansados do nativo perderam-se no horizonte. Falou da menina num misto de medo e saudade –  Mulher ardilosa, sagaz – esclarecia o homem – nascida da terra, do barro. Dizem que foi a criatura mais bela que já andou por essas terras. Bela e perigosa.

Aos onze anos,  a menina ficou fascinada com o que viu na vitrine. O cultivo escapou-lhe das mãos, o que lhe rendeu um puxão nas orelhas e um safanão de seu pai que a arremessou ao chão.  Das mãos bondosas de uma velha senhora, ganhou um lenço de papel e o livro riscado que tanto admirava.

Isabel  dizia a todos que o homem veio do barro – História esquisita de um tal de Prometeu que desafiou Deus. O homem  roubou lá um fogo, que era sagrado. Foi esse fogo que teria dado  vida a nós – dizia o velho –  Deve di ser verdade. É só barro que existe por essas bandas mesmo. Os homens da capital, esses podem ter sido feito de pedra, de cimento, de carne. Mas nós aqui do sertão, não!  Somos tudo feito de barro. A menina era muito inteligente – concluiu.

João sentia-se incomodado. Um frio subiu-lhe a espinha no decorrer da história.

– Sabe, doutor. Esse Deus aí que a menina falou...dizem que ele fez a mulher para se vingar de Prometeu, trazendo desgraça aos homens. Mulher feita de barro também, igualzinho a nós.  Mas com tanta formosura que nenhum de nós fosse capaz de resistir. Bebel era assim, desse jeito.

João encheu-se de coragem e quis saber mais sobre Bebel e seu livro. O homem lhe disse que aquele livro, de alguma forma, mexeu com aquela menina que, desde muito cedo, mostrava-se diferente das outras. Caçula de doze filhos, ela não queria o mesmo destino dos irmãos. Fugia da cana e nem se importava de levar com as chinelas no lombo. Queria a escola, os livros e sair daquela cidade. Vendida foi por duas vezes.  Jogou-se, com perícia, do banco do caminhão. Estava acostumada a misturar-se à lama. Quando fugia, ninguém lhe alcançava pelas terras de barro, por dentro do canavial.

Numa tarde, porém, o destino lhe alcançou. A menina jogou para cima jarro d´água, prato e comida. Agarrada ao livro riscado, correu do cheiro da cana, do sol que lhe queimava a mufa e do suor que lhe ardia os olhos. Descia e subia.  Tanto fazia, que fez o corpo cair, o joelho ralar e o homem chegar.

Foice de um lado, canaviar de outro. A barba lhe roçava os seios e as mãos atacavam as cerdas de seu corpo. Não houve  grito, choro ou lamento. Apenas um breve bufar de dor naquele corpo rosado, de penugem fina. O viajante entrou em seu caminhão, se pos no mundo e, como tanto outros, nunca mais ouviu-se falar dele. Isso é comum aqui por essas terras. Eles vem, abusam de nossas mulheres e as deixam a própria sorte. Mas, como eu disse, amigo, com Bebel era diferente. 

João se inquietou ainda mais com aquela história.

Dizem que quando a noite daquele dia chegou, a chuva desceu, torrencial. O corpo de Bebel, jogado ao relento, se misturou à lama. Os deuses, sobre o solo, despejaram raios e uma centelha do fogo sagrado lhe atingiu o peito. Depois desse dia, muitos já disseram ter visto ela por aí. Saia rodada, bata colorida...sempre carregando o tal livro riscado. Ela seduz os coitados e os transforma em barro – disse em tom de confessionário.

Como assim? –  indagou João

Amanhecem barro!Um monte deles já viraram barro. Lá pelas bandas do Quixadá, fizeram até um lugar para enterrar essa gente. Mas, provar , ninguém nunca provou não. Também , sabe como é, né?  enterraram homens de barro no barro! como é que faz depois para achar se tá tudo misturado?

Falam po aí que Bebel era uma dessas deusas de que lhe falei. Ela foi enviada a terra para acabar com o sofrimento do sertanejo. Veio para trazer água e progresso. Mas, violaram o corpo da pobre menina...como castigo, os Deuses lhe dotaram de fogo... É, o fogo que derrete o homem e o transforma em barro. Está escondido em seu ventre!  Quem a toca, ó, vira estátua. 

João arrepiou-se. Arrependeu-se profundamente por estar ali. Achou mesmo uma boa idéia desistir da trepada. Olhou para o lado e nesse descuido nem notou que o homem a quem falava desaparecera. Foi então que bateu o desespero. Tentou sair, mas a porta não abriu.  Uma dor intensa no abdômen o levou ao banheiro. A porta rangendo e o vento assobiando aumentava a tensão. A sombra de um vulto no teto lhe fez disparar o coração. Perfil de menina. Rosto fino, cabelos longos, carregando um livro na altura da cintura. A mesma pele rosada, a mesma penugem fina.

No vale de Quixadá, dizem, há por lá uma nova estátua.  É de um homem. Um homem de aparencia triste e inocente. E não se sabe ao certo por que cargas d`agua, deram a lhe chamar de João.


Por: Henrique Biscardi

sexta-feira, 13 de maio de 2011

OS HORMÔNIOS DE MALÚ

Coisa mais antiga, uma caneta e um pedaço de papel. É isso mesmo que ela queria! Queria ser antiga. Estava cansada de ser moderna e fingir que nada sentia. Ela queria colo, queria carinho. Não queria remédio. Achava a modernidade estranha. Minha avó era feliz – dizia – Seu marido lhe compreendia, lhe socorria. Não quero uma porra de um complexo químico que me narcotize. Eu não quero isso! Quero ser frágil, quero ser mulher. E quero um marido, antigo. Que me sustente e me atenda em meus caprichos. Não quero meus hormônios dialogando com essa catota amarronzada e patética.

Imaginou que uma folha de papel amassada, banhada em lágrimas e perfume, esculpida por tinta de caneta preta e arremessada ao vidro do parabrisa dianteiro de seu Meriva,  com quem ele transava mais do que com ela, seria suficiente. Então, propôs-se a escrever.  

As palavras, porém, era a dificuldade. Seus pensamentos eram conflitantes e faltava-lhe concentração. A televisão ligada, num outro cômodo. O tique-taque do relógio da cozinha, o rangido da cadeira em atrito com o assoalho, a metamorfose dos hormônios, o sarcasmos dos neurônios, tudo a incomodava.

Levantou-se. Sentou-se. Acomodou-se no sofá. Almofada entre as pernas. No momento seguinte, levadas à nuca, ao pescoço, ao chão. Derrubou o abajur – Viado!.Levantou-se. Deitou-se. Levantou-se. Tropeçou nos chinelos que lhe machucaram os dedos – Viado!.  Caminhou até a cozinha e abriu a geladeira. Dedo no copo da geléia,  dedo na boca, mão na tampa, corte no dedo – Viado!.João novamente, na mente – Aquele corno, viado!.

Ela nunca o fez corno e se o fizesse ele nem se importaria. Provavelmente o máximo que ela conseguiria era um empate. João não era brocha, não negava fogo. Não era pobre, sujo ou mal educado. Não era vagabundo. Não tinha mãe que ela pudesse ofender. Não tinha irmão viado. Tinha um irmão. Sim, tinha um irmão. Tão bonito, charmoso e gente fina quanto aquele filho da puta. E a folha continuava vazia.  

Linhas vazias que gargalhavam daquela imagem patética. Olhos esverdeados, encharcados. Rosto redondo, nariz vermelho, enorme. Uma caixa de lenços de papel, usados, espalhados pelo chão frio e encerado. Malú virou um copo de água, com açúcar. Pensou em usar o telefone.   Pegou o fone. Colocou-o na mesa. Pegou o fone, colocou-o na mesa. Pegou o fone...

As horas passavam e Malú chorava. Chorava e nem sabia porquê, chorava. Ria também. Ria e chorava. Olhou para João que, no porta retrato, lhe sorria. Um sorriso que lhe parecia sarcasmo. O segurou entre as mãos e o xingou. Não apenas ele, mas até a sua sexta geração. Depois, com ele conversou. Queria alguma resposta. Jogou-o em cima da cama e desta vez foi ao telefone e ligou mesmo:

- O quê?
- Me traz uma coisa?
- Sim. O que?
- Uma coisa, João! Uma coisa!
- Eu levo amor, mais o que?
- Arg! Homens! Nada João, nada. Vai à merda, João. Vai a merda!

Malú desligou o telefone e rendeu-se. Escureceu o quarto. Ligou o ar-condicionado, colocou seu pijama de flanelas com desenhos de joaninha e deitou-se. Suas lágrimas secaram e o cansaço lhe venceu. Dormiu.

Às 18h30 João chegou. Preparou uma bacia e a encheu de água quente. Levantou o corpo de sua amada suavemente. Ela abriu os olhos e pendurou-se em seu pescoço. O rapaz trazia um chá e um comprimido de Postam. Ela tomou a medicação e lhe retribuiu com um beijo carinhoso, enquanto o rapaz massageava os seus pés submersos na água morna:

- Obrigado, meu querido. Você é um amor. Acho que o tratamento está dando certo, este mês  estou bem melhor, não acha?

- Bem melhor, amor. Bem melhor!


Por: Henrique Biscardi

  

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O PEDIDO

Buscava um significado em cada coisa. Uma luz, um sinal. Olhou para aquela moeda dourada, fosca e suja, e pensou em seus dias dourados. Da alegria de surgir no meio de uma esteira e desfilar por entre olhares cansados e libidinosos. Cair dentro de um saco plástico e passear de navio, de lancha, de barco, carros e motos. Descansar na boca de um caixa, nas mãos felizes de uma criança, na barriga de um porquinho. Depois, juntar-me com suas amigas e fazer uma festa! Transformar-se numa bola de sorvete, numa revista de pintar, num livro, num vestido, num carro, numa casa...Malú queria mais de sua vida, queria ser feliz.

Sentia uma inquietação em seu peito. Imaginou que o garçom, parado próximo às costas de sua cadeira, imóvel feito um dois de paus e baforando em seu cangote, fosse uma espécie de segurança. Sua missão não seria a de apenas apressar-lhe o pedido, mas garantir que ela o aceitasse. Malú se sentia incomodada.

Um outro funcionário aproximou: com sua licença, senhora – e precipitou-se a limpar a mesa. Passou uma escovinha, caçando as migalhas. Retirou uma lata de refrigerantes e duas xícaras de café vazias. Seu erro foi mexer no pires:

- As balas o senhor pode levar, a moeda é minha.

Robério espantou-se e olhou para o “segurança” que também não entendeu. O rapaz, porém, achou que seu emprego valia mais do que um real e deixou Malú ficar com sua gorjeta.  A moça colocou a moeda de volta à mesa. Seu olhar deixava claro, no entanto, que ali devia ser o lugar dela.

Suas pernas balançavam num ritmo alucinante. Chamou Robério e pediu as balas de volta. Chupou todas. Entre cada uma que ela absorvia,  uma olhada no espelho e uma passada com os dedos no canto da boca, ajeitando o batom que nunca estava bom. O ritual seguinte era o do celular. Tirava-o de dentro da bolsa e olhava.  Primeiro, a hora. Depois, chamadas e mensagens. Nada de novo acontecia. Mas Malú não reclamava das horas. Sabia que Estava bastante adiantada.

Percebeu, após algum tempo, que havia uma televisão ao fundo de cada lado do salão. Porém,  não havia som e as vistas já não  lhe oferecia condições para a leitura das legendas. Mesmo após observar que se tratava de um canal de notícias, o que não lhe interessava muito, fez questão de trocar de mesa. Levou consigo, a moeda. Manú sentiu-se mais confortável e sem que ela pedisse, lhe ofereceram água, a qual foi prontamente aceita. 

João chegou na hora marcada e a inquietação de Malú aumentou. Olhos arregalados, rosto esbranquiçado, uma cara de pavor. O sorriso do rapaz logo amarelou. A moça estranhou que o “segurança" já não lhe acompanhava. O estresse agora era em função da demora em lhe trazerem o cardápio. Suas pernas balançavam ainda mais e suas mãos só pararam de sacudir no ar quando não apenas um, mais dois garçons vieram em seu socorro. O "segurança" também aproximou-se. Malú segurou firme a moeda.

João tentou se servir, mas a menina raspou o arroz com brócolis da pequena travessa que mergulhou em seu prato. A batata gratinada e a maioria dos cubos de frango fritos que emergiam pela copa do abacaxi, ensopados por catupiry, tiveram o mesmo destino.  

O rapaz estava com fome e com fome ficou. A velocidade com que Malú falava e comia lhe tiraram o apetite. Sem mencionar que pouco lhe restou para que pudesse formar um prato.  O frango, o arroz, a batata, o copo de vinho, tudo misturado, triturados e liquidificado na boca de Malu. As palavras de Malú não faziam o menor sentido, mas João mantinha a calma e concordava com tudo. Irritou-se apenas com os olhares incrédulos dos garçons que disfarçaram e dispersaram. Depois de alguns minutos, Manú respirou, limpou a boca, descansou o guardanapos sobre o colo e, finalmente, olhou para João.


O rapaz olhou para a Malú, que apresentava o rosto um pouco mais corado. Puxou-a pelas mãos, aproximou-se e lhe dei um curto beijo nos lábios. A moça o correspondeu  sem muita paciência, como quem esperava ansiosa por algo. O rapaz voltou ao assento de sua cadeira, abriu um sorriso e puxou, do bolso esquerdo de seu paletó, uma caixinha prateada.

Antes que o rapaz pudesse dizer qualquer coisa, Malú arrancou-lhe a caixinha, o anel e o pedido de sua boca. Pegou a aliança de brilhantes e ela mesma a colocou no dedo anelar da mão direita. Com os olhos marejados, tirou do bolso de seu casaquinho aquela moeda e a levantou na direção da vista do rapaz:

- João! Seu anel é um encanto, lindo, maravilhoso e eu aceito sim, casar com você. Agora, Está vendo essa moeda? Está vendo?  O seu brilho, João já causou grande encantamento, sabia? Essa moeda, João, já percorreu o mundo. Andou de navio, barco, iate, avião. Foi cobiçada por muitos, João, embora alguns não lhe tenham dado tanto valor. Esse moeda, João, já fez a alegria de crianças, já foi o início de grandes projetos. Essa moeda, João! Essa moeda! Está vendo? Está vendo?

Fez-se silencio por alguns segundos, enquanto João encarava a moeda, na cara e na coroa:  

Quero ser feliz está entendendo? Quero ser feliz! Então, mais uma vez eu digo: caso sim, caso com você. Mas guarde bem guardado, muito bem guardado, essa moeda. Dê valor a ela. Muito mais do que o meu sim e esse anel caro, lindo e maravilhoso que você acaba de me dar, e ela que, se você me amar de verdade, vai nos manter unidos, entendeu? Entendeu, João?

João pegou a moeda, guardou-a na caixinha prateada e a colocou no bolso, enquanto  Malu, tranqüila e serena, escolhia a sobremesa.

Por: Henrique Biscardi