sexta-feira, 20 de maio de 2011

A MENINA DO LIVRO RISCADO

Saia rodada, bata colorida e um belo sorriso. Mascava chicletes. Tirou-os da boca com a ponta dos dedos e olhou para João. O rapaz tentou não lhe dar atenção. A moça insistiu. Conversaram longamente, já à mesa. Enquanto comia, disse a ele que queria trepar. O rapaz tinha um compromisso e lhe ofereceu uma carona. Na despedia, um beijo e um bilhete com o endereço.  

Uma chuva torrencial caia a sua frente. Andou quilômetros pelo nada. Sem saber que havia chegado, atolou as rodas no barro. Desceu do automóvel e a lama parecia sugar-lhe as pernas. Um senhor magro, de pele curtida e mãos firmes, lhe prestou socorro e o convidou a taverna.  João olhou em volta. Ambiente escuro e sombrio. Aceitou de bom grado a manta e uma caneca de  “quentão”. Enquanto seu corpo se aquecia, o velho acendeu seu cachimbo de fumo adocicado.

Algumas perguntas iniciais tiveram respostas evasivas. O homem mudou de feição quando João perguntou por Bebel. Os olhos cansados do nativo perderam-se no horizonte. Falou da menina num misto de medo e saudade –  Mulher ardilosa, sagaz – esclarecia o homem – nascida da terra, do barro. Dizem que foi a criatura mais bela que já andou por essas terras. Bela e perigosa.

Aos onze anos,  a menina ficou fascinada com o que viu na vitrine. O cultivo escapou-lhe das mãos, o que lhe rendeu um puxão nas orelhas e um safanão de seu pai que a arremessou ao chão.  Das mãos bondosas de uma velha senhora, ganhou um lenço de papel e o livro riscado que tanto admirava.

Isabel  dizia a todos que o homem veio do barro – História esquisita de um tal de Prometeu que desafiou Deus. O homem  roubou lá um fogo, que era sagrado. Foi esse fogo que teria dado  vida a nós – dizia o velho –  Deve di ser verdade. É só barro que existe por essas bandas mesmo. Os homens da capital, esses podem ter sido feito de pedra, de cimento, de carne. Mas nós aqui do sertão, não!  Somos tudo feito de barro. A menina era muito inteligente – concluiu.

João sentia-se incomodado. Um frio subiu-lhe a espinha no decorrer da história.

– Sabe, doutor. Esse Deus aí que a menina falou...dizem que ele fez a mulher para se vingar de Prometeu, trazendo desgraça aos homens. Mulher feita de barro também, igualzinho a nós.  Mas com tanta formosura que nenhum de nós fosse capaz de resistir. Bebel era assim, desse jeito.

João encheu-se de coragem e quis saber mais sobre Bebel e seu livro. O homem lhe disse que aquele livro, de alguma forma, mexeu com aquela menina que, desde muito cedo, mostrava-se diferente das outras. Caçula de doze filhos, ela não queria o mesmo destino dos irmãos. Fugia da cana e nem se importava de levar com as chinelas no lombo. Queria a escola, os livros e sair daquela cidade. Vendida foi por duas vezes.  Jogou-se, com perícia, do banco do caminhão. Estava acostumada a misturar-se à lama. Quando fugia, ninguém lhe alcançava pelas terras de barro, por dentro do canavial.

Numa tarde, porém, o destino lhe alcançou. A menina jogou para cima jarro d´água, prato e comida. Agarrada ao livro riscado, correu do cheiro da cana, do sol que lhe queimava a mufa e do suor que lhe ardia os olhos. Descia e subia.  Tanto fazia, que fez o corpo cair, o joelho ralar e o homem chegar.

Foice de um lado, canaviar de outro. A barba lhe roçava os seios e as mãos atacavam as cerdas de seu corpo. Não houve  grito, choro ou lamento. Apenas um breve bufar de dor naquele corpo rosado, de penugem fina. O viajante entrou em seu caminhão, se pos no mundo e, como tanto outros, nunca mais ouviu-se falar dele. Isso é comum aqui por essas terras. Eles vem, abusam de nossas mulheres e as deixam a própria sorte. Mas, como eu disse, amigo, com Bebel era diferente. 

João se inquietou ainda mais com aquela história.

Dizem que quando a noite daquele dia chegou, a chuva desceu, torrencial. O corpo de Bebel, jogado ao relento, se misturou à lama. Os deuses, sobre o solo, despejaram raios e uma centelha do fogo sagrado lhe atingiu o peito. Depois desse dia, muitos já disseram ter visto ela por aí. Saia rodada, bata colorida...sempre carregando o tal livro riscado. Ela seduz os coitados e os transforma em barro – disse em tom de confessionário.

Como assim? –  indagou João

Amanhecem barro!Um monte deles já viraram barro. Lá pelas bandas do Quixadá, fizeram até um lugar para enterrar essa gente. Mas, provar , ninguém nunca provou não. Também , sabe como é, né?  enterraram homens de barro no barro! como é que faz depois para achar se tá tudo misturado?

Falam po aí que Bebel era uma dessas deusas de que lhe falei. Ela foi enviada a terra para acabar com o sofrimento do sertanejo. Veio para trazer água e progresso. Mas, violaram o corpo da pobre menina...como castigo, os Deuses lhe dotaram de fogo... É, o fogo que derrete o homem e o transforma em barro. Está escondido em seu ventre!  Quem a toca, ó, vira estátua. 

João arrepiou-se. Arrependeu-se profundamente por estar ali. Achou mesmo uma boa idéia desistir da trepada. Olhou para o lado e nesse descuido nem notou que o homem a quem falava desaparecera. Foi então que bateu o desespero. Tentou sair, mas a porta não abriu.  Uma dor intensa no abdômen o levou ao banheiro. A porta rangendo e o vento assobiando aumentava a tensão. A sombra de um vulto no teto lhe fez disparar o coração. Perfil de menina. Rosto fino, cabelos longos, carregando um livro na altura da cintura. A mesma pele rosada, a mesma penugem fina.

No vale de Quixadá, dizem, há por lá uma nova estátua.  É de um homem. Um homem de aparencia triste e inocente. E não se sabe ao certo por que cargas d`agua, deram a lhe chamar de João.


Por: Henrique Biscardi

8 comentários:

  1. Muito bom Henrique!!
    Parabéns!!
    Sucesso sempre!
    Beijo

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  2. Perfeito, um texto forte que nos prende a atenção...uma pitada de mistério, sensualidade......muito bom!!!!

    PARABÉNS POR MAIS ESTE TEXTO, QUE MUITOS OUTROS VENHAM E TRAGAM COM ELES MAIS SUCESSO!!!!!!

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  3. Bom, já te disse o que achei. E acima de tudo: poético. Parabéns, Biscardi.
    Que momento!

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  4. Adorei!!!
    Parabéns!! Beijossss... sempre!!!

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  5. Tem o tom de uma lenda urbana mas você a enriquece com toques bem pessoais de um bom contador.

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  6. AMEI a Isabel. "Lavou" a alma das mulheres rsrs Parabéns Henrique. Adoro suas "heroínas" !!

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  7. Muito bom. A gente fica querendo adivinhar o q vem depois. Adorei o suspense!

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  8. Adorei o texto no estilo "lenda urbana", mas com muita sensibilidade, suavidade e poesia. Parabéns!!!

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