sábado, 18 de dezembro de 2010

ENQUANTO BEATRIZ DORMIA

Pensei em lhe contar muito do que vi por lá. Falar das coisas que aconteceram, sobre os lugares por onde andei e as experiências por que passei. Sua vontade de me beijar, porém, me pegou de surpresa.  Você nem reparou, minhas malas flutuavam dependuradas sob meus ossos, testando a resistência de minhas mãos. Condenei-me pelo tempo que passei fora e por não ter correspondido aquele abraço, aquele carinho, aquele beijo. Fiquei ali, imune e imóvel. Insensível, acrescentaria.

Mas ela deu de ombros. Abraçou-me com toda a intensidade, como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Em seus braços, sumi. Envolveu-me com tanta força que parecia ter estilhaçado tudo dentro de mim. Seu corpo tremia, seus olhos brilhavam e seu sorriso era bem maior do que o meu caráter. Seus dedos afundaram-se no algodão de meu casaco e sua língua estava macia e quente como um brigadeiro que acabara de sair do fogo. E eu ali, apagado, inerte, preocupado apenas em lembrar-me de onde havia colocado o ticket do estacionamento.


Só depois de alguns minutos todos perceberam que eu não estava só. Ana me soltou e outros tantos vieram e me abraçaram Apresentei-lhes a minha nova empresária com indisfarçável desconforto. Todos a cumprimentaram surpresos e decepcionados. Ana se esvaiu. Tentei lhe acompanhar, mas ela desapareceu por entre pessoas, carrinhos e bagagens. Queria me explicar,  lhe pedir perdão. Mas antes que eu pudesse, ela desapareceu.

Carregaram a mim e a minha bagagem até o carro. Quando cheguei em casa, meu sorriso estava amarelo e Raquel preferiu hospedar-se num hotel. Tentei explicar em vão quando não se tratava propriamente de uma namorada. Com tantas viagens e ela resolvendo tudo para que eu me ocupasse apenas de meu jogo de Tênis, acabou rolando alguma coisa. Ficaria na cidade apenas por três dias, a fim de fechar alguns contratos publicitários. Nada a mais.

Raquel foi embora e depois de alguma insistência, consegui agendar um jantar com Ana. Eu ainda a amava, com certeza. Ana era a coisa mais importante da minha vida. Deixaria minha carreira por ela, mas isso já tinha sido discutido. Cinco anos fora, o que ela esperava? 

Estava resolvido a construir minha família. Havia largado o circuito e estava fechando um contrato com uma emissora local para tornar-me comentarista. Provavelmente seria o meu último contato com minha empresária, mas o que poderia ter feito? Vocês acham mesmo que eu poderia ter dito: “Desculpe, Raquel, apesar de todo esses anos cuidando de minha carreira, não posso deixar você ter participação nesse meu último contrato por que minha ex-namorada não pode saber de sua existência”?

Ana Buscou-me em casa, pois não me recordava direito sobre ruas e lugares. Recebeu-me carinhosamente e trocamos alguns olhares durante o trajeto. Estava nervoso. Muito nervoso. Ela também. Seus lábios tremiam. Mas ela estava linda. Chegamos em pouco tempo e não havia mais espaço para se evitar um contato. Tomei a iniciativa, aproximei-me e dei-lhe o braço. Ela aceitou o meu cavalheirismo. Entramos:

- Obrigado pelo convite – agradeceu-me
- Era o mínimo que eu podia fazer. Você foi tão afetuosa em minha chegada.
- Eu sei. Olha, desculpe. Sei que não deveria..
- Como não? Eu é que deveria ter te preparado de alguma forma para a ocasião.  
- Ah! Deveria mesmo!
- Calma, Ana. Não viemos aqui para brigar, certo?
- Sim. Desculpe. É que, é que...como você pode ser tão canalha!?
- Acho que forcei uma barra. Não estamos preparados para termos essa conversa.  
- Do que você está falando, Cláudio. Nós nunca vamos estar preparados para ter essa conversa! Sabe por quê? Sabe por quê, Cláudio? Porque você é um canalha! Conversa nenhuma vai mudar isso! Passe-me a carta de vinhos, por favor.

Achei melhor não contestá-la. Optei por deixá-la desabafar e achei boa, a idéia do vinho. Sei que seria uma longa conversa. Mas tinha algumas cartas na manga. Afinal, nós havíamos terminado o namoro, em nosso último encontro. 

Pedimos o vinho, o jantar e comemos alguma coisa da cortesia oferecida pelo restaurante:
- O patê está ótimo – disse, enquanto ela sorria embaraçada – desculpe, esqueci que você não come.
- Olha, Cláudio...
- Sim.
- Seu irmão me procurou, sua irmã me ligou, minha mãe me ligou. Então, vamos acabar logo com isso, né? Não vai haver reconciliação, ok?
- Mas, você não está entendendo o que aconteceu. Raquel...
- Não fale nela comigo! Aquela pintinha preta acima dos lábios, feita no lápis, já me diz, suficientemente, o que preciso saber sobre ela.
- Você está tirando conclusões precipitadas.
- Deixa eu falar – retrucou diante de minha tentativa de interromper uma trajetória do discurso que não parecia que me seria favorável – Eu pensei bem durante esses cinco anos que você passou competindo na Europa. Senti muito a sua falta. Tentei me distrair, me ocupar com outras coisas e como deixamos livre, um ao outro, no momento de sua partida, até tentei me envolver com outras pessoas. Não consegui. Nos últimos dois meses, e Deus é testemunha, só pensei em te ver de novo. E te abraçar, te beijar, te levar para casa e fazer amor com você pelo resto de nossas vidas. Mas, naquele dia..
- Ah! Está vendo? Você também tentou se envolver com outra pessoa! E agora fica aí, me condenando.
- Escuta aqui, seu canalha – disse, segurando firme a faca, acho que sem a intenção de me agredir – quando você partiu, nós combinamos que deixaríamos a coisa acontecer naturalmente. Falamos inclusive, que seria uma prova para ver se nosso amor era mesmo aquilo que imaginávamos. E se alguém, no meio do percurso, descobrisse  o contrário, o primeiro a saber, seria o outro.
- Mas, eu não encontrei ninguém. A Raquel...
- Já falei para não pronunciar o nome de sua amante nesta mesa. Se você voltar a convidá-la para o nosso jantar, eu vou me retirar. Fui clara? 
- Está bem, conclua, então.  
- A verdade, Cláudio, é que você, culpado ou não, destruiu o que sentia por você, dentro de mim. Aquele dia, eu estava imensamente feliz com a sua volta. Preparei tudo para te receber...me preparei também. Quando te vi, meu coração saiu pela boca, parecia que você estava vindo para mim pela primeira vez em minha vida, em nossas vidas. Mas quando eu te abracei, percebi que quem estava ali, nos meus braços, me beijando, me acariciando, era outra pessoa. Não era você. Fui para casa e chorei, chorei, chorei. Chorei mais do que nos cinco anos em que você esteve fora. Parecia que eu tinha ficado viúva e acho que fiquei mesmo! Eu sei que você é o mesmo, sei que quem está aqui na minha frente é o Cláudio. Eu consigo te reconhecer como aquela pessoa amável, carinhosa e bondosa por quem me apaixonei. Pode ser loucura, mas aqui dentro, no meu coração, porém, você morreu. E tem sido uma tortura essa sua volta. Desculpe eu te falar isso...Mas eu preciso! Cada vez que ouço falar em você, cada vez que meu telefone toca, cada vez que lembro que você está aqui, tão perto e tão distante, eu choro, eu sofro. Então, Cláudio, vim até aqui para te pedir uma coisa. Sei que não deveria. Sei até que não tenho esse direito. Mas eu preciso. Preciso que você vá embora da Cidade. Olha, se eu pudesse, eu mesmo iria – prossegui segurando fortemente as minhas mãos – Mas eu não posso.  Você sabe que eu não posso. Você não! Você tem vários opções em sua vida, tem até lá a vagabunda te esperando. Vá embora, Cláudio. Você pode treinar em qualquer lugar do país, qualquer clube vai dar milhões para lhe ter. Você é novo. Ainda consegue jogar por, no mínimo, mais dois ou três anos. Por isso eu te peço. Te peço, não. Te imploro. Eu não agüento mais este sofrimento. Faz isso por mim? Você pode fazer isso por mim?
- Eu vou. Você me pede, eu vou. Vou porque te amo. Vou porque sei que cometi um grande erro. Talvez eu até pague a conta pelo resto de minha vida. Então, como último pedido, quero apenas que você reflita sobre uma coisa. Você tem razão, quando diz que posso jogar por mais dois ou três anos.  Está certa também quando percebeu  que aquela pinta acima dos lábios, feita de lápis, já dizia tudo mesmo sobre  a Raquel. Então, pense e responda: Por que resolvi largar tudo, toda a minha vida, todo o resto de minha carreira e voltar a viver aqui, agora, em nossa cidade? A minha resposta é  porque eu não conseguia mais viver longe de você. Agora, Qual é a sua?

Depois de quase um ano, estava de volta àquele aeroporto. Caminhei até a porta do elevador por três vezes e voltei. A ascensorista riu e me sugeriu as escadas. Num impulso, entrei e respirei. Apenas um andar. Passos infinitos, bem devagar. Sentei-me:

- Olá
- Olá
- Não precisava ter vindo.
- Eu sei. Mas quis vir.
- Ok?
- Ok.
- Então...vamos?
- Vamos. Já despachou suas malas?
- Sim – disse com um sorriso nervoso nos lábios.
- Eu conheço este sorriso.
- É, eu sei.
- Você acha que devemos?
- hum...acho que sim.

Até hoje, não sei dizer o que deu errado naquele primeiro reencontro ou o que deu certo neste último, há mais ou menos três anos. A única coisa que sei é que amar é um grande desafio, uma grande entrega, um mergulho, um “dar e receber” incondicional. Um exercício que tento aprimorar a cada dia, pois sei o quanto o amor é frágil, o quanto nós somos frágeis. Mas aprendi, nesses últimos anos, que quanto mais a gente tem consciência de nossa fragilidade, mais forte nos tornamos. Enquanto Beatriz , nosso lindo bebê, dorme em meus braços, reflito sobre o quanto nos tornamos fortes, conhecendo nossas limitações. Diante de nossa aparente fragilidade, Ana apenas nos observa e sorri, alimentando-se para nos alimentar, com o seu amor. 

 Por: Henrique Biscardi

5 comentários:

  1. gostei disto de língua macia e quente como brigadeiro morno rss ...mto bom Henrique , gostei muito de seu conto ...abraços

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  2. Adorei tb!! Amar, defeinitivamente e' um grande desafio e nos tornamos fortes com o aprendizado desse desafio!!!Mais conscientes, sabios e talvez mais tolos...rsrs. A parte do brigadeiro foi boa!!

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  3. Muito bom, Henrique!
    O mais difícil do amor é essa entrega incondicional...

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  4. Adorei, Henrique! Um dos melhores e a conclusão, excelente. Destaco esse trecho: "A única coisa que sei é que amar é um grande desafio, uma grande entrega, um mergulho, um “dar e receber” incondicional. Um exercício que tento aprimorar a cada dia, pois sei o quanto o amor é frágil, o quanto nós somos frágeis. Mas aprendi, nesses últimos anos, que quanto mais a gente tem consciência de nossa fragilidade, mais forte nos tornamos." Vou compartilhar, com os devidos créditos, claro. Beijos e sucesso pra vc!

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