quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MARCELA E A PINTA VERMELHA

Marcela detestava acordar cedo. Foi Marcelo quem passou por cima dela e alcançou o despertador. Os dois se levantaram sem muito ânimo. Olharam o céu azul cravejado de estrelas. Elas brilhavam foscamente diante dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte. A sonâmbula guardava ainda um sopro de esperança de que o tempo havia mudado e que talvez chovesse. Mas não chovia.

Ele desceu logo as escadas e começou a colocar as coisas no carro. Ela demorou-se duas horas a mais que o normal. Primeiro, no banheiro. Depois, diante do espelho, sem imaginação e disposição para ver o que lhe cabia.

Coube-lhe alguns segundos de resignação, tempo que aproveitou para deflagrar sobre si alguma fragrância e deixar cair sobre seu corpo longilíneo um leve estampado bege. Desceu as escadas com suavidade, como quem preferia não ser notada.

Uma xícara de café não foi suficiente para lhe despertar. Caiu em sono profundo por alguns quilômetros. Despertou ao som de Pearl Jam e até curtiu por alguns instantes a paisagem. Depois da parada para um pipi, subiu as pernas acima do porta-luvas. Algodão entre os dedos e um palito com algo macio na ponta, molhado de acetona, lhe divertia.

Marcelo permanecia calado. Passados alguns quilômetros, ingenuamente, balbuciou algumas palavras solenemente ignoradas. Tentou uma música mais romântica e arriscou uma apalpada nas coxas de Marcela. Ela, reclamou que o esmalte lhe borraria as unhas, mais para se livrar daquelas mãos do que por qualquer outra razão.

Mas a mão de Marcelo lhe feriu mais do que às suas unhas. Talvez ela não tivesse ainda se “dado conta” de sua presença.  Quem sabe estivesse tendo um pesadelo? Mas não estava. Marcela descobriu-se pensativa e começou a interrogar-se sobre aquela situação.  Dos questionamentos à indignação passou uma fração de segundos, tempo em que Marcelo parou para uma segunda mijada:

- Você acha que vale a pena viajar assim?

- Ué! Você não quis vir?

- Claro!  Você acha que eu rasgo dinheiro. Está pago, não está? Ou você acha que eles vão me devolver mil e duzentos reais porque minha esposa está com crise existencial?

- Marcelo! Liga a porra do carro e vamos embora. Não começa que eu volto daqui mesmo.

- hahahahahaha. Como? De jegue?

Marcelo tinha idéia da encrenca que estava por arrumar e a chamou de volta para dentro do carro. Marcela pegou o celular e falou coisas sem importância com a mãe. Depois, reclinou mais o assento e tampou os olhos com o braço direito. Tentou dormir, mas acontecimentos recentes borbulhavam em seus pensamentos. O que mais lhe incomodava naquele momento não era aquele pano de prato que custara 1,99, presente dado por sua sogra no último natal. Um elefante de cerâmica marrom, obra de arte feita por sua cunhada, lhe causava náuseas: 

- Sabe o que é, Marcelo? Não dá. Nós dois caminhamos por trilhas diferentes, nos afastamos, nossas afinidades se esvaíram com o tempo. 

- Do que você está falando?

- Da porra do elefante marrom, por exemplo. A gente trocou a tv de tubo por uma nova,  de Led. LED Marcelo!  Aquele elefantinho não tem nada a ver.

- Mas foi minha irmã quem fez!

- Fez e nos deu, né? Vê se ela tem algum na casa dela? Porra! Já era, acabou. Tira uma foto, pinta um quadro, deixa ele cair no chão sem querer, sei lá. Mas tira aquele elefante da nossa sala, por favor.

- Está bem. Vou tirar, vou tirar.

- Vai porra nenhuma! E também não quero que você tire. Na verdade, Marcelo, eu quero que você me tire da sua sala, da sua vida, sei lá.

- Mas do que você está falando?

- Não sei, Marcelo. Mas a gente está infeliz, porra! A gente nem trepa mais! Quanto tempo faz, hein? Seis meses? um ano? A gente não tem filho, Marcelo. Não chegamos nem nos 30. Porra! A gente era para trepar todo dia, enlouquecidos. Até um ano atrás, você queria comer meu rabo todo dia, agora nem minha bunda você olha mais, Marcelo!

- Não exagere, Marcela. Não exagere.

- É exagero, é exagero! Então fala...fala! Em que lado da minha bunda eu tenho uma pinta vermelha?

- O que? Porra, Marcela! Eu estou dirigindo.

- Fala Marcelo. Responde pra mim que eu chupo seu pau aqui, agora, como se a gente tivesse dois meses de namoro e não cinco anos de casados.

- Tá doida? Eu estou dirigindo, Marcela. Dirigindo! Você quer que eu bata a porra do carro? O que é que você quer? Quer matar nós dois é?

- Nós dois estamos mortos, Marcelo! Estamos pateticamente mortos. Dois jovens, cheios de vida, cheios de tesão, sentados em frente a uma tv escrota, num domingo, vendo Faustão. E você ainda ri das coisas que ele fala, Marcelo. A mesma piada. Cinco anos, Marcelo e você ainda ri! Eu sorrio é da nossa relação. Eu dou gargalhadas da nossa relação. Agora responde! Responde porra!!! Em que lado da minha bunda fica a pinta vermelha, hein.



- Direito, Marcela! Direito! A porra da pinta fica do lado direito do seu corpo.

Marcelo e Marcela se separam antes do verão passado. Soube por ele, que aquele boquete foi o contato mais íntimo que eles tiveram ao longo dos seis meses que ainda ficaram juntos após aquela viagem. Soube também que a menina recuperou o tempo perdido e hoje é atriz da indústria pornô. Criou seu próprio site, faz striper na web cam e está ganhando rios de dinheiro. Já meu amigo, continua em jejum, grudado ao seu elefante marrom, assistindo Faustão.



Por: Henrique Biscardi

2 comentários:

  1. gostei da forma humorada com que tratou o assunto, aliás sempre é sério quando se trata de relações...casa-se sem conhecer com quem se casa, separa-se por conta de banalidades, ou pelo menos usa-se banalidades prá decidir sobre sentimentos. Enfim, sentimentos não são levados à serio... Gostei também do diálogo é tal qual se ouve hoje (um dia desses um jovem casal vizinho brigava neste tom rss).Valeu! Uma pergunta: ele parou o carro? rsss

    ResponderExcluir