sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O ALFAIATE DE PIEDADE

Sentado à mesa, molha o pão dormido no café e lê o jornal, sem pressa. Procura algum sentido nas notícias e sorri da própria sorte. Coloca o papel de lado. No bolso de trás um pente fino da marca Flamengo. Nenhuma identidade. Sr. Nino é torcedor do América.

Mas, sua grande paixão são os cavalos. A bem da verdade, seu único prazer nos últimos seis anos, depois que dona Ieda lhe deixou sem ter tido vontade. Passava os dias ali, sentando diante de uma mesa de quatro lugares, pés de ferro e sem pintura. Seguro em suas mãos, um velho aparelho que funciona à pilha e pega até  “as rádios do estrangeiro”.

Todos os dias, a mesma rotina. Após o café, coloca uma camisa listada de botões e tecido. Por baixo, uma camiseta branca, limpa. Veste também, e com orgulho, as calças de tergal, feitas pelo prórpio, há mais de 30 anos.   Caminha até a casa de apostas e faz a sua “fé”. No caminho de volta, uma pausa na venda do Sr. Armínio. Compra algumas balas para Isabela, a menina do prédio em frente, que saí para a escola às onze horas, não sem antes, brincar de esconde com o velho solitário.

Sr. Nino foi o alfaiate mais requisitado de Piedade em meados dos anos 30. Vinha gente até dos “engenhos” fazer terno com ele. Orgulhava-se também, de ser conhecido por toda a vizinhança e de ter conquistado um número de amigos de forma que nem conseguia lembrar-se de todos. Nunca, porém, perdeu a humildade e nem quis saber de acumular riqueza ou sair do bairro.

Seus filhos, não. Cada um, dos três, tomou um rumo diferente na vida. Carolina  foi para os Estados Unidos. Carlinhos aventurou-se pelo Marrocos e Claudionor ficou mais perto, em Brasília. Aqui no Rio, foi morrendo um a um dos irmãos, vizinhos e amigos. Restou seu Nino, seu rádio e as corridas de cavalos.

 Mas a solidão nunca foi sua companheira, exceto ao final do Ano. Isabela não ia para a escola e Sr. Armínio partia para Portugal em busca de parentes ainda vivos. O mais cruel, porém, era falta de corridas. As lojas de apostas até permaneciam abertas, mas apenas para loterias. Conseguia assim, um sorriso ou outro de uma atendente mais antiga e um “Feliz Natal” do jornaleiro. No mais, a tristeza finalmente, o vencia.

Nessa época era difícil mesmo, levantar-se e cozinhar. Adoeceu uns três Natais seguidos, de forma que naquele ano, resolveu contratar uma firma que lhe forneceria quentinhas. No dia 24, não fazia Ceia. Comprava alguns bolinhos de bacalhau e garrafas de vinho chileno.  Embora não fosse muito religioso, a Missa do Galo lhe fazia alguma companhia, já que o bom velhinho não aparecia. E o Natal passava assim, só e devagar. 

Isabela apareceu, vindo do nada, bateu-lhe a porta e o chamou para brincar. Seus pais, passaram do sexto andar à cobertura, e imaginaram – pensou Sr. Nino – poder ver os fogos de Copacabana lá de cima. Mas o velho alfaiate ainda não estava decidido a aceitar o convite.

O Reveillon logo chegou. Enquanto Sr. Nino permanecia indeciso, Isabela o conduzia, com suas mãos pequenas, pela imensa sala de seu novo lar. Atravessaram todo o apartamento e o alojaram numa confortável cadeira à beira da Piscina, onde foi apresentado a todos os convidados. Logo, Sr. Walter lhe cercou com alguns amigos e se perderam no tempo, falando sobre a vida, o bairro de Piedade e suas transformações. Quando os primeiros fogos foram ouvidos, caminharam até a sala e um espumante foi aberto. Dona Virna pediu um minuto de atenção. Agradeceu a presença de todos e anuncio a passagem de um vídeo comemorativo da nova casa.

Sr.Nino colocou os óculos para enxergar melhor, mas logo seus olhos ficaram embaçados. Um a um, seus filhos, noras e netos, surgiram a sua frente, ultrapassando as 42 polegadas daquele modesto televisor, invadindo a sua memória e espalhando-se por todo o ambiente. Foi a primeira vez que o velho alfaiate ouviu a palavra “vovô” e ele quase não agüentou de tanta emoção.  Achou todos muito gordos e nem reconheceu Claudionor, de infância tão franzina, e agora tão obeso.

Todos ficaram muito emocionados. Sentiram, verdadeiramente,  uma vontade imensurável de fazer parte daquilo, daquela família. Estavam, ao mesmo tempo,  agradecidos por terem estado este tempo todo reunidos, por terem  deixado de lado viagens, passeios e outros programas mais atraentes, para estarem ali, reunidos, numa data tão importante e num momento muito especial para as vida de DonaVirna, Sr. Walter e da pequena Isabela. 

Sr. Nino não tinha palavras. Preferiu voltar ao seu canto e experimentar, sozinho, aquelas doces imagens. Dizem que ele assistiu àquele DVD a noite inteira. Só lá pelas cinco da manhã, sem importar-se com a forte dor que sentia no peito, sentou-se na cadeira de balanço para descansar. Quando os primeiros raios do novo ano surgiram, o alfaiate sorriu como não fazia há pelo menos seis anos. Depois, segurou firme a mão de Dona Ieda e colocou-se à caminho da luz.    

O barulho da chaleira o despertou. Ainda sem poder se situar no tempo e no espaço, levantou-se e caminhou até a sala de estar. No local, não encontrou aparelhos de DVD nem cadeiras de balanço. Olhou para sua velha Telefunken, de imagens em preto e branco, com o tubo de imagem fudido, e se benzeu. Jogou de lado o medo de avião, o orgulho, a acomodação e a teimosia. Pegou a passagem mandada por sua filha e rumou aos Estados Unidos. No Free shop, comprou um discman,  um cd do Cazuza e descobriu que a solidão é mesmo pretensão de quem fica, escondido, fazendo fita.


Por: Henrique Biscardi

2 comentários:

  1. Gostei! Muito bom encerrar o ano com uma boa história.
    Seu Nino é um Fofo.
    Solidão é sentimento de quem não aprendeu a conviver consigo, com o silêncio, com as ausências... às vezes na vida é necessário que soframos para aprender.
    Ainda bem que o personagem teve um bom destino. Sofreu, refletiu, mudou. Todos podemos fazer isso, sempre.
    Que possamos nesse ano que se inicia, nos darmos a chance de recomeçar.
    Novos sonhos, novos objetivos, novos rumos... e de velho fique o aprendizado e tudo que nos ajudará a caminhar.
    Textos cada vez mais maduros. Beijos Henrique.

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  2. Obrigado, Chris! Você sempre tão generosa com os meus textos. Obrigado, viu. E mais histórias virão em 2011!!!

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