sábado, 5 de fevereiro de 2011

O EXPRESSO LITERÁRIO

A viagem podia durar uma hora e meia, mas suas pernas não agüentariam manter o corpo em pé por esse espaço de tempo. Preferiu ir, para depois, voltar. Quarenta minutos não lhe fariam tanta diferença. Detestava novelas, não tinha filhos, tv a cabo, nem marido. Apenas um teto de zinco e um ventilador roncador que a fazia dormir e deixava os vizinhos acordados. 

Ainda em Copacabana, sentou-se a sua frente um homem aparentando uns 30 anos. Alto, cabelos lisos e aloirados. Seus olhos eram azuis, o corpo franzino e estava bem vestido. Descansou uma perna sobre a outra. O cotovelo direito acomodou-se na coxa direita e o corpo ficou levemente inclinado para frente. Com uma das mãos segurava o livro.  Com a outra, avançava as páginas. E a viagem parecia não ter fim.

Bernadete admirou-se. Acompanhava atentamente cada mudança no olhar daquele homem, cada expressão de dor, fúria, angústia, tristeza, alívio, alegria e prazer. Adormecida em suas divagações, foi surpreendida quando as portas do vagão se abriram. Esticou seus olhos o quanto foi possível. Uma tristeza enorme invadiu o seu peito. Seu coração palpitou, uma lágrima escorreu e João seguiu seu caminho, pelas escadas, catracas e ruelas de Maria da Graça.  

Na manhã seguinte, Bernadete estava eufórica. Não conseguia esquecer a fantasia da noite anterior que correu rapidamente os corredores da Update Center. Galhofas a parte, deu pouca importância a alguns de seus pares que, insensíveis, zombavam do brilho esverdeados de seus olhos. Passou o dia cantarolando e contando as horas. Quando os ponteiros rosados de seu rolex falsificado apontaram 18 horas, saiu triunfante, desfilando seus 54 kg, bem distribuídos por 1,60 de altura, num lindo vestido rosa, clarinho, curto e estampado.

Aquele dia todos a notaram e seu Argeu fez questão de segurar-lhe a porta. Esperou até o quarto carro chegar para ficar no horário. Sorriu ao se deparar com o último banco do sexto vagão. Acomodou-se ao lado de João e com ele viajou, definitivamente sem pressa. A viagem estava agradável e o ar-condicionado que, na maioria das vezes, funcionava, criou toda uma atmosfera que dava à Bernadette a sensação de realmente estar em outro lugar, em outra dimensão.

João estranhou quando a moça pediu que retornasse ao início do livro. Não pode deixar de notar, porém, a ingênua felicidade que o brilho daqueles olhos esverdeados deixavam transparecer. Ofereceu-lhe o livro. Ela pouco lia e implorou pela voz do rapaz.

– “Em meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho: sempre que tiver vontade de criticar alguém, lembre-se de que criatura alguma neste mundo teve as vantagens de que você desfrutou”.

Aquelas palavras despertaram não apenas Bernadette, mas outros curiosos que detiveram o olhar naquela cena incomum: Um rapaz lendo para uma moça num vagão do metrô. Dizem que depois daquela noite, em que a grande maioria foi apresentada a O Grande Gatsby, vieram Grande Sertão: Veredas, O dia do Chacal; Rebeca no vale do sol; Dom Casmurro; O colecionador; Tenda dos Milagres e muitos outros clássicos da literatura brasileira e universal. Fala-se também que João largou a burocracia de uma repartição pública e tornou-se escritor, pouco depois que a administração proibiu a reunião no vagão mais disputado do carro 11354, do Metrô das 20 horas.  

A moça e outros passageiros jamais se esqueceram daquela noite e esperam, ansiosos, a madrugada da última sexta-feira de cada mês. Nesse dia, parte do Rio de Janeiro o Expresso Literário, uma viagem de trem onde saraus de poesia, leitura de clássicos e mesas temáticas levam, cada passageiro, a embarcar numa viagem ao infinito de suas imaginações.

Bernadette não encontra mais João. A rotina de duas horas de viagem até a Pavuna, com  escala em Ipanema, permanece. Trocou, entretanto, a UpDate Center pela Hoesh Construtora e o curso supletivo pela faculdade de arquitetura. Seu mundo agora é outro, bem maior. Seu céu não é mais feito de teto de zinco e a leitura tornou-se sua companheira,   no metro e em casa, para a felicidade geral de seus vizinhos que não sentem a mínima falta do velho ventilador roncador.  


Por Henrique Biscardi

3 comentários:

  1. Irresistível convite para viajar ao lado de João e a usar o nome Bernadete. Muitos querem essa transformação.
    Henrique ... brilhante!

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  2. Expresso literário... Gostei. Transformador. Parabéns! : ) Bjs

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  3. Achei lindo! dos melhores. Anda se superando Sr Biscardi...
    Então, já havia lido,mas até esqueci de te dizer porque não comentei logo.
    Continua com um estilo forte, porém agora sem passionalidade. Acho que esse João é o meu favorito, até agora.
    Parabéns!

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