terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O VESTIDO

Sentiu como se uma adaga perfurasse o seu cérebro, entrando por suas narinas, num mergulho profundo. Os olhos esbugalhados de espanto e medo. A face do terror. Sentiu repulsa e fascinação. Olhou os cômodos, a mobília e o banheiro.  Decidiu ficar, muito pelo vestido que sobressaltava às vistas e lhe causava inquietação. Afinal, quem venderia um imóvel com um vestido pendurado em uma de suas paredes?

João fez o cheque, providenciou alguns documentos que faltavam e realizou algumas reformas no imóvel, deixando-o pronto para a mudança. Marina poupou esforços e se concentrou apenas nos preparativos para o casamento. O apartamento estava novo, todo pintado, inclusive na altura em que aquele vestido foi encontrado, exposto.   

A noiva gostou quando entrou e não o viu. O vestido ausente da parede lhe trouxe alívio. O dia abafado, o cansaço da noite e o amor de João a fez dormir o sono mais profundo. O  despertar se fez apenas pelos afagos do rapaz, que lhe trazia uma bandeja repleta de alimentos para o corpo e para a alma.

Cama arrumada, jardins podados, jantar pronto. A televisão não lhe despertava interesse e apenas Fitzgerald lhe fazia companhia. Trocou o calor por um delicioso banho frio, a espera de João. Chegou ao quarto, envolvida numa toalha que caiu ao chão e deixou o seu corpo nu.  Fitou a mala que estava ainda por ser desfeita. Antes dela, a cômoda, e dentro,  o vestido.  

Marina o colocou diante de si. Apesar de guardado, sentiu o seu inebriante perfume. Deixou-o escorregar por entre seus braços e o abotoou nas costas, de frente ao espelho. Ajeitou a lateral do ombro e fez generoso, o decote. Jogou os longos cabelos para o lado, empinou-se lateralmente para ver atrás e achou-se bela. Apesar do arrepio que sentiu ao tirá-lo, decidiu guardá-lo para João.

Naquele apartamento, naquela noite, a coisa esquentou.  João assombrou-se quando viu  Marina, transtornada, não se fazendo de rogada. Rasgou-lhe a roupa e o fez refém de seus desejos. Saciou-se por intermináveis dias e horas. A luz do sol só viu João após o terceiro ou quarto dia, quando a moça, esfacelada ao chão, ardida em paixão e desejo, boca carnuda, vermelha e molhada, ainda sorria, enquanto ele finalmente conseguia se desvencilhar de suas pernas já prostradas.

Quando a noite chegou, o casal parecia envergonhado. O silencio os acompanhou por toda a refeição e ao deitar-se, João mostrou-se apreensivo. O ronco que tanto aflige casais se mostrava parceiro e amigo. O rapaz finalmente desfaleceu. Quando os primeiros raios de sol despertaram-lhe a consciência, virou-se sobressaltado.  Aliviou-se ao constatar que sua amada ainda dormia.

João pensou na virgem que conheceu e na madrugada que antecedeu àquele dia.  Não conseguia trabalhar e passou o dia tentando entender a noite. Marina comprou cadeados, correntes, cordas, galhos de arruda e todo o tipo de mandinga. Levou o criado mudo ao porão e o trancou.   

Meses se passaram e o casamento beirava o precipício. João arrastava seu corpo da casa ao trabalho e Marina da máquina de lavar ao varal, do fogão à mesa de jantar. Fitzgerald já não lhe fazia companhia e a menina  já via alguma graça nos programas da TV.

A tarde passava chuvosa como em outros dias. Marina tentava reagir e folheava alguns livros de sua coleção. Parou numa página qualquer de um livro qualquer que não lhe pertencia. Soltou-lhe aos olhos a frase: “Um vestido não faz uma mulher, ele apenas faz aflorar a mulher que existe dentro cada uma”.

Marina fechou rapidamente o livro e o colocou na prateleira. Ficou pensativa por infinitos minutos e chorou pelo que não compreendia. Sentiu uma mão calorosa afagar-lhe o cabelo, mas teve medo de olhar para trás. Lembrou-se de ser menina, levantou-se e se viu mulher. Olhou em volta, já sem medo. Encarou as paredes, as janelas, os móveis e tudo o mais que a cercava. Desceu as escadas que a levaram ao porão. Apanhou o criado mudo e de dentro dele, o vestido.

João chegou e não encontrou panelas sobre o fogão. As luzes também não estavam acesas e nem Marina encontrava-se, indiferente, a frente de sua TV de 40 polegadas. A casa parecia vazia, mas não estava. Na escuridão, o rapaz sentiu um cano frio na nuca e uma voz abafada que vedou seus olhos e lhe pediu que deitasse à cama. Amarrado e amordaçado, desesperou-se quando Marina lhe tirou a venda e exibiu-se com o vestido.

João debateu-se por alguns segundos, até que Marina deitou-se sobre seu corpo e beijou-lhe a boca. Arrancou-lhe também a mordaça e com o dedo indicador, clamou por silêncio. A moça levantou-se e se colocou ao pé à beira da cama. Tirou o laço que lhe enfeitava o colo e Espreguiçou-se, deixando que o vestido lhe percorresse o corpo até o chão. Nua, afastou o vestido com os pés e o jogou de lado. Subiu novamente sobre João e enquanto se amavam, o desprendeu das amarras. 

Após cinco dias intermináveis de luxúria e prazer, João consentiu que Marina deixasse os seus braços para atender à porta, onde uma velha senhora lhe aguardava.

– Olá, moça jovem e bonita. Vim buscar meu vestido.

Marina estremeceu.

– Oh! Meu anjo, não tenha medo. Você não precisa mais dele. Você agora é uma mulher e seu marido, um homem! Sejam felizes!

Marina caminhou até o quarto e não encontrou o vestido. Voltou a porta e não encontrou a senhora. Mas a felicidade nunca mais abandonou aquele casal.





Por: Henrique Biscardi

2 comentários:

  1. Eta que vestido poderoso!!!
    Biscardi é ser bem repetitiva,mas: está ótimo!!!
    Esses dois ultimos contos deram um salto enorme na qualidade, na narrativa, em tudo.

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  2. Quantos casais se perdem quando trancam o relacionamento no criado mudo.
    Esse despertar é a grande sacada para acordar o que está trancado no porão.
    Quebrar correntes, libertar o amor e resgatar a relação.Bela mudança.
    Parabéns, muito bom.

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