quarta-feira, 14 de março de 2012

A VIGA DE FERRO

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre elas, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos, enquanto aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre elas, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos, enquanto aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

Passava os dias ali, agachada, postada ao chão...

Malú queria trabalhar. Ele, alguém que cuidasse da roupa, da comida e da casa. A moça venceu e batalhou por algum tempo numa tecelagem. Mas o destino lhe deu Bebel. E depois Matheus, Victor, Melissa. Quando a quinta criança nasceu, o lar  já não existia. Malú já não existia, principalmente para Renato.

O rapaz foi paulatinamente substituindo as chaves de boca e o macacão surrado de graxa pelo taco de sinuca. Da cerveja para a cachaça e dessa para o inferno. Os dias passavam, a noite chegava e ele seguia conhecendo um barraco novo a cada dia. Isso até o meio do mês, enquanto um tostão lhe restava. Depois, só bebida e um corpo macio para bater e se encostar. 

Antes de sua mulher, seu chefe se encheu. João recebeu apenas um cheque nominal e lhe pediram as chaves da garagem de volta. No boteco, levou uma surra e beijou o asfalto. Queriam a sua morte, mas seu credor gostou da idéia e aceitou Malú. Arrastado por toda a viela foi jogado à porta de casa e chamou por sua mulher. Nua, de bruços no sofá, Malú não pode compreender aquilo e enquanto seu algoz se vestia. Ela decidiu que nada mais existia.  

No término do primeiro quadrante, do terceiro ano, disseram que a moça enlouqueceu. João sonhou que estava na “hidro” com uma de suas vagabundas. Só teve tempo de arregalar os olhos, antes que seu cérebro derretesse. Ele gritou. Gritou bastante. Encharcado em água e sangue ferventes. Chegou sem vida ao hospital. E Malú apenas sorriu.

Tiraram-lhe os filhos. E ela sorriu. Passaram lhe as algemas, depois as correntes. Ela sorriu. No tribunal, também sorriu. Diante dos polícias, do delegado, do juiz e do júri, apenas sorriu.  quando voltou a ver os filhos, chorou. Abraçados aos rebentos, deu um beijo em cada e despediu-se: “Vocês estão livres”.

Aquelas foram suas últimas palavras, seu último choro, seu último sorriso. Malú morreu. Envolta num velho trapo de pano, ela morreu. Não contava os dias, nem olhava as horas. Comia, bebia, dormia, acordava e apenas a ferrugem daquela viga de ferro na fresta do muro lhe acompanhava.

Os dias de chuva eram bem piores. Presos na cela ou amotinados  no pátio, todos assistiam aquele farrapo humano, descendo até o chão, respirando a terra, procurando, talvez o horizonte ou o mar, sem no entanto, desprender seu olhar da viga de ferro. Resistiu a uma, duas, três doenças, com alguma gravidade, disseram. Contudo seu corpo, que resistira a tanta coisa, não concordava com a idéia de morte e a sorte lhe trouxe Felipe. A compaixão transformou-se em amor e Malú respirou.

O jovem médico conseguiu a remoção da moça para uma clínica particular: terapia, medicamentos e respeito. A moça já não enxergava mais a viga, embora, às vezes, ainda a procurasse. Felipe encontrou os filhos. Um a um. Reuniu a todos em uma grande casa na cidade de Pendotiba, onde meses depois puderam receber de volta a mãe.

Custou cerca de 5 anos para que Malú  pudesse entrar definitivamente na vida de Felipe. Foram necessários  recursos, atenuantes e pareceres médicos até que a condicional lhe fosse ofertada. Pela primeira vez, a moça teve o que sempre sonhou quando se apaixonou por João.

O médico mostrou-se reticente por mais um ano e ao final do verão de 1987, resolveram viajar. Passaram 20 dias longe de tudo e de todos. Felipe voltou convencido de que a mulher estava totalmente recuperada. Numa noite de verão, exausto pelo trabalho, Felipe beijou sua mulher. Em seguida, entrou no chuveiro e tomou um banho. Colocou champagne no gelo e perfumes no pieto, como Malú gostava. O médico era delicado em cada toque. A moça Malú gemia. Seu corpo contorcia-se de prazer. Por um instante, seu olhar apaixonado perdeu-se ao caminhar de encontro ao de seu amante. No canto do teto havia uma viga de ferro, enquanto a chaleira chiava à beira do fogão.


Por; Henrique Bicardi

Um comentário:

  1. Olá, boa tarde. Gostaria de parabenizar pelo blog, e as dicas relacionadas também com ferro e aço. Já estou adicionando o blog á favoritos.

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