terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O CAJADO

Desceu ladeira abaixo, quicando de paralelepípedo em paralelepípedo. A cabeça foi bem próxima do chão, várias vezes. A palma da mão ficou ralada e o coração quase lhe fugiu pela boca. Dobrou a esquina, varado! Ficaram pelo caminho, um pedaço de jeans velho e algumas partes de peles e pêlos de seus joelhos. Entrou como uma flecha por um casebre insalubre, poucos instantes antes de queimar-se junto com o resto de suas coisas e amaldiçoar a todos daquela cidade. Muitos juram que seu corpo jamais foi encontrado.  Nenhum vestígio, nada. Outros garantem ter visto uma sombra esvaindo-se pelo milharal. A maioria prefere não mexer no cajado escuro, escorado ao relento.

João do Nascimento era o seu nome de batismo, mas Joca deve ter mexido a cabeça na hora derradeira, pois abençoado como devia ter sido não se meteria em tanta confusão. Aos doze anos, foi descoberto roubando a sacristia e no castigo foi pego comendo um coleguinha no confessionário. Seus pais agradeceram ao juiz quando este o enviou ao reformatório e aproveitaram a ocasião para mudarem seus destinos e se colocaram na estrada.

Organizou uma greve, colocou fogo em colchões e teve o corpo perfurado por uma faca. Ficou 15 dias entre a vida e a morte e quando voltou, parecia ter feito às pazes com o criador. Ficou agradecido aos que lhe salvaram a vida e passou a fazer uma série de serviços na casa de saúde onde se recuperava. Tanto fez pelos padres, donos do lugar, que estes lhe conseguiram um perdão e Joca voltou a ser João.

Meses depois, conheceu e apaixonou-se por Alice.  Estava concluindo o supletivo e, em sua formatura, fez agradecimento especial à sua professora. Não tardou, começaram um romance. Mas a menina entrou para a faculdade e partiu em direção à cidade grande. Muitos temeram a volta de Joca, mas o rapaz manteve-se firme.

Uma grande mudança ocorreu em Canavieiras nos anos seguintes. A agroindustria chegou e João animou-se. Fez um curso técnico e logo chegou a gerente de produção. Comprou uma casa e tornou-se “homem feito”. Ganhou o respeito e a confiança dos vizinhos. Casou-se com Maria Rita e a vida seguia um curso inimaginável por ele e por seus pais.

Perto de Manú nascer, Alice reapareceu em sua vida. Seu pai era homem poderoso na cidade e transformou a escola técnica em Universidade, e sua filha em Reitora. O primeiro encontro entre os dois foi amistoso. Alice estava noiva de Pedro Paulo e João carregava sua filha em seus braços. Com o tempo, porém, os hormônios foram se inquietando e o desejo reacendeu no peito dos desajustados. Encontravam-se pela madrugada, caídos de amor. Alice ameaçou largar de Pedro, mas João tinha Manú. Combinaram de fugir os três, rio abaixo e Maria Rita não se conformou.

A caçada durou meses. A mulher e o sogro no encalço de João. Mas ele e sua nova família evaporaram na trilhas da caatinga e quando o mar chegou e a cidade cresceu, não houve jeito de encontrá-los. Atravessaram o atlântico e ganharam o mundo.

Mas João há muito não era mais Joca e acreditou, quando soube por Ismael, que Sr. Egberto, nas últimas, carecia do perdão da filha. Soube também que Maria Rita havia se amancebado com outro e ambos haviam deixado a cidade para trás para melhor viver na capital.

Fez, então, o caminho de volta. Alice, na verdade, nunca se acostumou ao clima da Europa e além de Manú, existiam também Roberto e Ricardo, netos legítimos do moribundo. Na primavera de 1983, eles voltaram ao sertão.

A cidade estava transformada. Pouca poeira sobrara e no solo, germinava arvores e jardins. A seca havia sido superada e a industria trouxe progresso. As ruas de paralelepípedo existiam mais em função do turismo do que pela falta de verbas para seu asfaltamento. João e Alice foram recebidos como esperavam: 

– Vamos deixar o passado para trás. Não há felicidade maior para um homem perto da morte do que ter sua família ao seu lado. 

Mas Maria Rita não estava perto de morrer e pensava diferente. Deu notícia no jornal da cidade sobre a morte do “Coronel” e na foto, ela reconheceu João. Decidiu reaver Manú e arquitetou por meses a sua vingança. E foi assim que num domingo qualquer de maio, a moça surgiu ao largo do campo do meio, de frente para o castelo. Não estava sozinha. Cerca de quinze jagunços, armados até os dentes, entraram fulminantes pela porta principal, derrubando tudo o que viam pela frente e matando a todos pelo caminho.

Alice jogou os filhos numa charrete que também se queimou antes de chegar ao portão lateral do cerco. Depois, atirou-se no mar, em vão, enquanto o castelo ruía em cinzas. Joca reencarnou-se em João e muitos contam que matou para mais de dez antes de ser visto dando cambalhotas pela ladeira das macieiras.

Maria Rita só reencontrou Manú, anos depois, na ponta de um punhal, que lhe atravessou o coração e lhe embaçou as vistas. Alfredo, seu marido, duelou com Ricardo até seus olhos perderem o viço. Após o massacre, um vendaval devastou a cidade. Raios desceram dos céus. Postes tombaram, animais voaram, casas caíram. Não sobrou tijolo sobre tijolo na cidade. 

Em seis meses, o mato cresceu e a fábrica faliu. Nada mais germinou, nem a cidade voltou a ser construída. Visto de longe, do alto do morro, só um velho casebre resiste. De perto, não existe nada além de um velho cajado, de pé, apoiado apenas na linha do horizonte. 
 Por: Henrique Biscardi

8 comentários:

  1. Muitas histórias terminam assim mesmo....não sobra nada!!!

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  2. Nossa Henrique, seu lado Rodrigueano eclodiu....
    Dá licença que eu detestei esse Joca.
    Amor, com ódio,com posse, com vingança... não é amor.
    Cade vez mais à vontade, continua.
    Beijos

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  3. anda conversando com Dalton Trevisan? rssss
    vai que vai Henrique... gostei mto !

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  4. Obrigado a todos pelo carinho. Vocês são um incentivo muito grande para eu continuar tentando, me aprimorando.

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  5. Nossa, arrasou!! Com ritmo, leitura sem pestanejar, mudança de rumo a toda hora que te dá inúmeras possibilidades. Que maravilha!!!! Me fez lembrar Domingo no Parque do Gilberto Gil, o mesmo ritmo. Excelente. Adorei!!!!!! Achando o caminho da sua literatura, hein. Parabéns. Apenas uma opinião.

    Marcela Tagliaferri

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  6. Minha opinião é totalmente leiga, mas foi o seu conto que mais gostei até agora. Ficou tão claro de visualizar as cenas em sequência! Psseou pelo sertão, foi até a europa e voltou..pra tudo se acabar por ali mesmo. Tragédia anunciada por um amor mal resolvido. Ah, esse amor! Sempre ele fazendo das suas...ou servindo de desculpa pros nossos devaneios. "Curti" muito!!

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  7. É... um épico, um faroeste...? Não há gênero que defina a capacidade destrutiva dos desejos humanos.

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