terça-feira, 23 de novembro de 2010

A escolha de Bernardo

Chegou mais cedo em casa e o pegou num momento de distração. Não havia cartas, cigarros, bebidas e mulheres. Só um corpo cansado, moído, jogado semi nu ao sofá. Ele levantou-se rapidamente e estremeceu diante de sua presença:

- Ah, por isso que eu chego em casa à noite, o jantar está atrasado e você me diz que não teve tempo de fazer nada.

Sofia pegou as sacolas e seguiu para o quarto. Bernardo se esticou e aparou o aspirador de pó que ameaçava cair no chão. Lembrou-se da roupa no varal e por sorte ainda não chovia. Caminhou até o quintal e de lá observou os garotos jogando bola em uma quadra próxima. Lembrou-se da infância e depois da adolescência. Com a vassoura na mão, viajou no tempo e no espaço. Até para sonhar, era preciso disfarçar.

Sua vida começou a mudar aos 17 anos. Estava cursando o último ano do ensino médio e ao invés das aulas de apoio, os ensaios nos fundos do colégio. Tocava guitarra e cantava. O auge da carreira foi no Garage, na Praça da Bandeira, e uma “palinha” que deu nos quinze anos de alguém, no Círculo Militar. Depois disso, entrou em decadência.

Os amigos da banda eram mais abastados financeiramente e conseguiram o ingresso numa universidade de ensino privado. Bernardo dançou e às duras penas conseguiu um emprego de atendente num laboratório de análises clínicas e exames. Lá, conheceu Sofia que encantou-se pela voz rouca e pelo som que emanava de seu violão. Mas, segundo ela, não ficava bem para uma médica já com uma certa notoriedade entre a classe, envolver-se com o cara que recebe “potinhos com coco”. Fez-lhe, então, a proposta para que ele a servisse como secretário e marido.

Logo no primeiro mês, as coisas ficaram bem definidas. Bernardo a satisfazia como marido e era um fracasso como assistente. Após um seminário nos EUA, a falta de um segundo idioma, faz Sofia despedi-lo de sua função secundária. Dispensou também a empregada e um novo arranjo ficou estabelecido. O tempo necessário a esses esclarecimentos foi infinitamente superior à paz do rapaz. Em sua retrospectiva, bem antes da lua de mel, Sofia já berrara o seu nome:  

- Bernardo! Larga isso aí. Pega aqui, olha. Vá à padaria, compre um franguinho para a gente almoçar que eu já estou azul. Ah! É para comprar na padaria lá de baixo. Essa aqui da esquina, não cozinha direito o frango.

Bernardo detestava descer a ladeira. Quase sempre, encontrava os amigos de infância que cochichavam piadinhas e riam de sua inusitada condição. Mas encará-los era uma opção mais aceitável do que contrariar Sofia. Então, partiu para o sacrifício.

Logo que passou da esquina, encontrou alguns de seus ex-companheiros sentados à mesa com o violão e algumas garrafas de cerveja. Havia também algumas mulheres, crianças e carrinhos de bebês. Curtiam a manhã de sábado, ensolarada, sem grandes preocupações. E essa era a esperança de Bernardo em passar desapercebido:

- Olha quem está aí..chega aí – disse um
- Como se pudesse – murmurou o outro – enquanto todos riam.

Bernardo apenas acenou. Entrou na padaria e ficou vendo os frangos rolarem. Só faltou sentar-se, igual  a um vira-latas. Comprou a ficha e ficou ali, novamente, hipnotizado:

- Chega aqui Bê! Senta aqui com a gente!

Um fúria incontrolável o tirou de sua inércia. Atravessou a rua e sentou-se confiante, cabeça erguida, determinado. Acendeu um cigarro, pegou o primeiro copo de cerveja e o virou. Ofereceram a ele, o violão. Começou bem, com Legião Urbana. Desfilou todos os grandes sucessos do pop rock dos anos 80 para todos os públicos que passaram por lá no início daquela tarde. Às quatro, o tempo fechou:

- O que significa isso? De quem é este copo de cerveja, este cigarro, este violão? Cadê o nosso frango?
- Em primeiro lugar, seja educada e dê boa tarde para todos.
- Você ficou doido – disse sacando-o de sua cadeira.

Bernardo desvencilhou-se do braço de Sofia e prosseguiu em sua insubordinação:

- Chega – O seu maldito frango está ali, é só pegar, está pago – disse apontando para a padaria. Agora, vá para casa e faça bom proveito.

- Preste bastante atenção Bernardo – ameaçou Sofia com o dedo indicador em riste – eu vou atravessar aquela rua e vou lá pegar a porra do frango. Se quando eu chegar em casa, a mesa não estiver posta e o senhor não estiver tomando um banho, sua mordomia vai acabar. Não vou te dar mais nada. Você vai ter que trabalhar para se sustentar porque eu não estou aqui para bancar nenhum vagabundo beberrão, entendeu?

Bernardo aproximou-se lentamente, olhou nos olhos de Sofia e lhe disse pausamente:

- Escute aqui você, Sofia. Atravesse a rua, se quiser. Coma o frango, também se quiser. Mas não enche a porra do meu saco! Se você falar mais alguma coisa, todas as suas amigas, colegas de trabalho, pacientes, familiares e afins vão conhecer o outro lado de Sofia. Todos vão saber, por exemplo, meu amor, o quanto você gosta de ser sodomizada na cama? TÁ ME OUVINDO? TÁ ME ENTENDENDO?

Bernardo exibia um sorriso jamais visto em seu rosto quando o rapaz da padaria o chamou:

- Está bom este aqui para o senhor? Está bem fritinho.
- Sim, sim. Este está bom.

Subiu a ladeira rapidamente para o frango não esfriar. Entrou, tomou um banho, colocou a mesa e chamou Sofia para o almoço:

- Depois do almoço, eu termino de passar o aspirador, está bem, meu amor?
Sofia passou-lhe a mão no rosto e os dois comeram em silêncio.   

Por: Henrique Biscardi

Um comentário:

  1. Tadinho do Bernardo rsrs... Gostei muito! Fiquei imaginando as cenas. Quero um desse para mim! hahaha

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